Em 2023, haverá um voo comercial sem pegada carbónica. Será propaganda?

No segundo semestre, a companhia aérea Virgin Atlantic vai fazer um voo de Londres a Nova Iorque usando somente biocombustível. Mas a descarbonização da indústria da aviação é mais complexa.

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O avião da Virgin Atlantic terá um motor novo e vai viajar de Londres a Nova Iorque GARY HERSHORN/Reuters

O ano de 2022 ainda não tinha acabado quando se anunciava que a companhia aérea britânica Virgin Atlantic tinha ganho o concurso lançado pelo Governo do Reino Unido para realizar em 2023 o primeiro voo comercial transatlântico neutro em carbono. O voo irá usar 100% de combustível sustentável, além de créditos de carbono, para conseguir atingir a neutralidade a nível das emissões de dióxido de carbono, o principal gás responsável pelas alterações climáticas.

“Em 2023, um dos emblemáticos Boeing 787 da Virgin Atlantic, alimentado por motores Trent 1000 da Rolls-Royce, vai descolar de Heathrow, Londres, e viajará até ao aeroporto de Nova Iorque John F. Kennedy – uma jornada feita todas as semanas por milhares de pessoas”, lê-se num comunicado lançado no site do Governo britânico.

“Mas esta não será uma viagem vulgar”, revela o comunicado, adiantando que o uso de 100% de combustível sustentável mais a compra de créditos de carbono irá produzir um voo "verde". A instituição tinha lançado um concurso em Maio de 2022 para atribuir um milhão de libras (1,14 milhões de euros) à companhia aérea que ganhasse o concurso e a Virgin Atlantic fê-lo.

“O voo vai ocorrer no segundo semestre de 2023”, refere ao PÚBLICO Anna Catchpole, do gabinete de comunicação da Virgin Atlantic, explicando que vai ser um voo único e que ainda não se sabe se vai poder levar passageiros. “Para começar, esta é uma iniciativa isolada”, explica por e-mail. “Esperamos poder levar clientes no voo, se as aprovações assim o permitirem.”

Os combustíveis sustentáveis para o transporte aéreo (conhecido na sigla em inglês por SAF, acrónimo de sustainable aviation fuel) são uma das estratégias para descarbonizar a indústria da aviação, que em 2019 foi responsável por 2,1% das emissões de CO2 em todo o mundo. Grande parte destas emissões surge graças ao querosene, o combustível amplamente usado na aviação, derivado do petróleo.

Neste momento, já se faz a incorporação de uma percentagem de SAF no combustível de aviação, que por questões técnicas não pode ser superior a 50%. Isso implica que os outros 50% do combustível (no melhor dos casos) seja ainda querosene, ficando-se longe de extinguir a pegada carbónica.

De qualquer forma, o uso actual de SAF é minoritário, típico de uma indústria que está a nascer. Na União Europeia, recorre-se a menos de 0,05% de SAF, de acordo com a Agência de Segurança de Aviação da União Europeia (UE). No entanto, o mesmo organismo explica que a Comissão Europeia propôs um aumento da proporção de SAF nos aeroportos da UE de 2%, em 2025, até 63%, em 2050.

Assim, a existência de um voo comercial de longo curso alimentado a 100% por SAF, que diminui bastante a pegada carbónica, é uma novidade. No entanto, mesmo este tipo de combustível tem uma pegada carbónica ao longo da sua produção. Por isso, a companhia aérea comprometeu-se a comprar créditos de carbono vindos de biochar, um carvão feito a partir de biomassa vegetal, que é enterrado no solo, onde o dióxido de carbono tem muito mais dificuldade em escapar.

"Mecanismo insustentável"

É possível produzir SAF usando energia renovável e produzindo-se um combustível sintético. Mas também é possível manufacturá-lo a partir de matéria vegetal ou seus derivados, como óleo de cozinha usado, resíduos da agricultura e florestais, obtendo-se biocombustíveis de segunda geração.

No caso do voo da Virgin, o SAF usado será “principalmente a partir de desperdícios de óleos e gorduras, tal como óleo de cozinha usado”, lê-se no comunicado. Ao contrário do uso de petróleo, que não pode ser reposto, o dióxido de carbono libertado a partir de biocombustíveis foi captado anteriormente pelas plantas, que o retiraram da atmosfera, criando um ciclo fechado.

Nesse sentido, o Governo do Reino Unido quer construir até 2025 três fábricas de produção de SAF de biocombustíveis. A própria Virgin Atlantic assinou recentemente um acordo para comprar anualmente, nos próximos sete anos, 37,5 milhões de litros de SAF à Gevo Inc, uma empresa norte-americana que produz o biocombustível a partir de sobras de milho de cultivo sustentável.

No entanto, há quem tema que esta procura por biocombustíveis de origem vegetal não seja boa para o ambiente. “De uma maneira geral, isso é um mecanismo insustentável em termos do ciclo de carbono”, diz ao PÚBLICO Pedro Nunes, especialista em política pública, que pertence à associação ambientalista Zero.

O ambientalista explica que será possível usar SAF a partir de sobras ou derivados de matéria vegetal em pequena escala. Mas, para sustentar mais amplamente a indústria da aviação, seria necessário o cultivo de biomassa vegetal propositadamente para esse fim. Para isso, teria de se ocupar mais território para cultivo, o que teria um impacto negativo para a biodiversidade.

Pedro Nunes adianta que em 2021 foram produzidos 100 milhões de litros de biocombustíveis. Em 2050, a meta é que estes combustíveis sejam responsáveis pela diminuição em 10% da pegada carbónica da indústria de aviação. Ou seja, “terá de se produzir 450 mil milhões de litros de SAF”, adianta o ambientalista. “Não temos recursos para isto”, acrescenta, defendendo antes os combustíveis sintéticos, produzidos a partir de energia renovável, onde se retira o CO2 do ar e o hidrogénio da água para produzir hidrocarbonetos “em tudo iguais ao querosene”.

Por isso, o voo de neutralidade carbónica da Virgin Atlantic “é uma manobra de propaganda”, interpreta o ambientalista, embora reconheça “que a aviação está a fazer um esforço para se tornar mais sustentável”.

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