Cientistas portuguesas extraem minerais valiosos da salmoura que ninguém quer

Duas engenheiras querem usar “nova” tecnologia para transformar o resíduo indesejado das centrais de dessalinização – a salmoura – numa fonte de minerais com valor económico. O magnésio é um deles.

PP - 23 DEZEMBRO 2023 - PORTO - CIENTISTAS  Faculdade de Engenharia sobre nova técnica que permite tratar a salmoura tóxica que resulta da dessalinização 
 spin-off SEA+TECH é valorizar os recursos do oceano para desenvolver com sustentabilidade os setores do mar e da energia. Esta tecnologia visa responder aos principais problemas ambientais apontados às tecnologias de dessalinização por osmose inversa, nomeadamente à descarga da salmoura produzida durante estes processos. Aponta-se para soluções com zero descarga, em que da salmoura produzida são extraídos recursos/minerais que estão concentrados nesta corrente e que se apresentam como essenciais em diversos mercados; nomeadamente, são considerados matérias-primas críticas pela EU.
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Com a ajuda de um pequeno reactor - dentro do qual há uma mebrana -, a cientista Sofia Delgado consegue separar o magnésio da salmoura Paulo Pimenta
PP - 23 DEZEMBRO 2023 - PORTO - CIENTISTAS  Faculdade de Engenharia sobre nova técnica que permite tratar a salmoura tóxica que resulta da dessalinização 
 spin-off SEA+TECH é valorizar os recursos do oceano para desenvolver com sustentabilidade os setores do mar e da energia. Esta tecnologia visa responder aos principais problemas ambientais apontados às tecnologias de dessalinização por osmose inversa, nomeadamente à descarga da salmoura produzida durante estes processos. Aponta-se para soluções com zero descarga, em que da salmoura produzida são extraídos recursos/minerais que estão concentrados nesta corrente e que se apresentam como essenciais em diversos mercados; nomeadamente, são considerados matérias-primas críticas pela EU.
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Técnica desenvolvida na Faculdade de Engenharia do Porto permite separar sais de magnésio da salmoura Paulo Pimenta

A investigadora Sofia Delgado estende o braço para mostrar, com orgulho, uma pequena caixa transparente com pedrinhas brancas. “É o magnésio”, diz a cientista a sorrir. Juntamente com Eva Sousa, Sofia afirma ter criado um método de valorização dos materiais presentes na salmoura – uma água extremamente salgada, e muitas vezes tóxica, que resulta de processos de dessalinização da água do mar.

Por outras palavras, Eva e Sofia garantem ter transformado um problema numa solução. Através de uma “tecnologia inovadora”, as duas engenheiras químicas querem transformar um subproduto indesejado – a salmoura – numa fonte de minerais com valor económico. O magnésio é o primeiro no qual a dupla está a trabalhar, mas o processo também promete a valorização de hidróxido de cálcio e cloreto de sódio (sal de cozinha).

O projecto das cientistas nasceu nos laboratórios da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP) e, há dois anos, deu origem a uma spin-off chamada SeaMoreTech. “Foi um desafio que nos foi lançado pelo professor Adélio Mendes”, explica ao PÚBLICO Eva Sousa, referindo-se ao investigador da FEUP muito conhecido por apoiar a transição de novas tecnologias para o tecido industrial.

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Eva Sousa e Sofia Delgado criaram a spin off SeaMoreTech Paulo Pimenta

Numa altura em que Portugal continental pondera acolher uma (ou mais) unidades de dessalinização, a proposta de Eva e Sofia pode ser promissora. Isto, porque a salmoura é um resíduo do qual todos se querem ver livres, sendo visto como um mal necessário para quem precisa de transformar água salgada em potável. A salmoura é, aliás, uma das razões pelas quais a localização de uma nova central pode ser tão polémica.

Um estudo das Nações Unidas, divulgado em 2019, indicava que as cerca de 16 mil unidades de dessalinização em funcionamento no planeta geram fluxos maiores do que o esperado de águas residuais com níveis de sal demasiado altos, isto sem falar nos agentes poluentes. O documento refere ainda que as unidades geram todos os dias cerca de 142 milhões de metros cúbicos de salmoura (50% a mais do que se pensava inicialmente).

Impacte na vida marinha

Além de possuir uma altíssima concentração de sal (7%), a salmoura pode conter resíduos tóxicos resultantes da adição de desincrustantes e outros produtos químicos que ajudam a melhorar a eficiência do processo de dessalinização. Daí que o descarte destes efluentes, já diluídos, deva ser feito longe da costa, por forma a mitigar o impacte nos ecossistemas marinhos.

“A salmoura também coloca problemas graves para a cadeia alimentar da fauna marinha”, observa Eva Sousa. Segundo as investigadoras, 10% a 15% dos custos de operação das dessalinizadoras estão ligados ao cumprimento de normas para a deposição desses resíduos. Se, no futuro, for possível dotar as unidades ibéricas desta tecnologia, a dupla acredita que haverá ganhos económicos e ambientais.

Graças a um pequeno reactor um cilindro do tamanho de uma embalagem de batatas fritas –, o processo de purificação da salmoura promove uma reorganização dos materiais. “Aquilo que entra não é aquilo que sai”, conta Eva Sousa. Uma mangueira fininha leva um líquido muito salgado, e rico em minerais, para o interior do cilindro. Após a passagem por uma membrana, sai uma água tão limpa que até se poderia beber.

O segredo do sucesso gravita à volta do controlo do PH durante a operação. “A alcalinidade garante que seja possível uma diferença de concentrações à superfície das membranas. Esta condição é a força motriz para a separação do precursor de magnésio”, esclarece Eva Sousa. As investigadoras evitam dar mais pormenores, uma vez que a tecnologia ainda não está patenteada e a negociação com um investidor está em curso.

Passar à fase semi-industrial

A dupla de cientistas afirma que a fase de desenvolvimento da tecnologia já está concluída, faltando agora passar à fase semi-industrial. “Em fase laboratorial, o nosso objectivo tem sido testar 200 mililitros por minuto, o que equivale a 12 litros por hora de salmoura, o que nos dá um quilo de magnésio por dia”, esclarece Eva Sousa. Já na fase seguinte, a SeaMoreTech almeja uma produção de 30 quilos de sais de magnésio por hora.

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Sais de magnésio extraídos da salmoura através de uma "tecnologia inovadora", garantem cientistas da SeaMoreTech Paulo Pimenta

Para já, ficam separados apenas os precursores do magnésio. Se a salmoura também pode oferecer cálcio e sal, por que razão apostar só nas pedrinhas brancas? “Porque o magnésio é o mais fácil de separar”, esclarecem as investigadoras.

No futuro, ponderam fazer a separação do hidróxido de cálcio e do cloreto de sódio (neste caso, teriam de alcançar um grau de pureza até 98%). “Seria uma vantagem em termos de processos, sobretudo se pensarmos que, nas salinas, são necessários cerca de seis meses para a obtenção do sal”, refere Eva Sousa.

Eva Sousa explica que a purificação da salmoura tem uma relevância não só económica e ambiental, mas também na área dos direitos humanos. “A extracção do magnésio é muito marcada por um trabalho altamente intensivo, sobretudo na China”, acrescenta Sofia Delgado. As duas referem que Pequim detém actualmente 90% da produção mundial deste elemento, recorrendo a um processo “muito ineficiente” denominado “Pidgeon”.

As investigadoras explicam que seria “uma grande vantagem criar uma economia descentralizada”, na qual cada país pudesse obter em solo nacional o magnésio necessário à indústria. O uso do magnésio tem um peso importante no sector automóvel, sendo muito usado numa liga com alumínio. É este material que permite tornar os carros mais leves, uma característica especialmente importante nos carros eléctricos, por exemplo.

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Cientista Eva Sousa, uma das fundadoras da SeaMoreTech, uma spin off da Faculdade de Engenharia do Porto Paulo Pimenta

Integrar na produção de hidrogénio verde

Tanto Eva como Sofia estão a trabalhar também na área do hidrogénio verde, estudando tecnologias para uma produção mais eficiente a partir da água do mar. Como a produção de hidrogénio verde exige grandes quantidades de água, a dupla considera a hipótese de a própria água resultante do processo de purificação da salmoura ser integrada na produção de hidrogénio verde. Isto é particularmente importante num país como Portugal, que enfrenta episódios frequentes de seca hidrológica.

O objectivo é que a nossa tecnologia seja uma integradora de processos. Numa unidade de dessalinização, cerca de 50% a 60% do total de água do mar captada é transformada em salmoura (o restante em água potável). Isto quer dizer que, com a nossa tecnologia, podemos aumentar pelo menos 1,5 vezes a capacidade de produção de água numa central”, estima Eva Sousa.

Tendo em conta que a produção de hidrogénio verde é vista, em Portugal, como um caminho para a descarbonização, as cientistas acreditam que a tecnologia que desenvolveram poderá contribuir para não aumentar o stress hídrico no país. Assim, se vamos ter muita produção deste combustível não fóssil, e se essas operações consomem muita água, novas formas de poupança e reaproveitamento terão de ser equacionadas. Esta, garantem, pode ser uma delas.

Tudo seria feito na mesma unidade a dessalinização e a produção do hidrogénio verde , à qual seria apenas necessário juntar o sistema de electrólise, antevê Eva Sousa.