A competição harmoniosa

O frente-a-frente Xi-Biden foi uma oportunidade para as duas principais nações do globo dizerem que vão continuar a competir, mas que esta competição não deverá passar os limites da razoabilidade.

Enquanto os canhões ribombam nas terras da Ucrânia, em Bali, na longínqua Indonésia, a anteceder a cimeira do G20, um estático, mas sorridente Presidente chinês, Xi Jinping, cumprimenta calorosamente o seu homólogo americano, Joe Biden. Em tudo fez lembrar o aperto de mão de um retraído Zhou Enlai e um desenvolto Richard Nixon, em 21 de fevereiro de 1972. Naquela altura, o cumprimento mudou o mundo numa semana; o atual, mudou uma semana no mundo.

O encontro indicia que foi mais movido pela iniciativa americana, sedenta de projetar o seu internacionalismo liberal, do que por uma expectante China, segura do seu centralismo estratégico. Xi Jinping chega a Bali relativamente contido, menos triunfalista, a braços com uma economia interna em desaceleração devido aos efeitos da política draconiana covid zero e com um planeta mais desconfiado com a sua investida mercantil global. Ainda assim, está numa posição política confortável, depois do 20.º Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC) o ter ungido numa liderança perpétua, cercado por um séquito de lealistas. Joe Biden, por sua vez, também aparece numa posição politica cómoda, depois de sair vencedor das eleições intercalares.

A verdade é que a serenidade interna de ambos os líderes contrasta com a incerteza do ambiente internacional. A China e os Estados Unidos entraram desde a era Trump numa belicosa relação bilateral, que os perigos de escalada obrigam a uma cautelosa reflexão. Os Estados Unidos permanecem na amargura de nunca terem conseguido trazer o gigante asiático para o seu aconchego político. Após 1949, com a fundação da República Popular, perguntava-se nos quarteirões americanos: “Quem perdeu a China?” Com a abertura dos diálogos bilaterais na era Nixon, voltou a acreditar-se na domesticação do sistema político chinês, mas nem a queda da União Soviética o fez vacilar.

A entrada da China na Organização Mundial de Comércio (OMC), promovida por congressistas como Joe Biden, e por um forte lóbi industrial americano, atiraram o Império do Meio para as dinâmicas da globalização económica. Mas o crescente liberalismo económico não acompanhou o sonhado liberalismo político. Foram toleradas muitas práticas comerciais dissonantes com as regras internacionais na ânsia que o país se abrisse politicamente e concedesse à sua população mais liberdades individuais. Em vez disso, Pequim aproveitou as vulnerabilidades dos sistemas democráticos liberais e das economias de mercado para subtrair dividendos.

Nos mercados internacionais, onde as subvenções são reprovadas pelas regras da OMC, entrou com um batalhão de empresas estatais, capturou tecnologia estrangeira, deu aos seus investimentos um sentido estratégico. Enquanto crescia exponencialmente, muitos mercados e condições laborais das economias mais desenvolvidas foram definhando. O ganho económico chinês traduziu-se num ganho político, e a China foi ascendendo no plano internacional com vontade de ditar novas regras. Reforça os diálogos com o “Sul Global”, começa a pensar numa ordem internacional alternativa centrada em Pequim. A Rússia de Putin gosta da ideia, aproveita a oportunidade e vira-se para o Oriente. A ordem internacional centrada em Washington tinha agora que se ver com uma nova ordem ditada pelos “emergentes”.

Com a chegada de Xi Jinping ao poder, não se consegue abafar o entusiasmo dos números. Exalta-se a nação, canta-se vitória sobre o fracasso do “modelo americano”, promete-se o domínio tecnológico e militar mundial. Tocam as sirenes em Washington. Os Estados Unidos iniciam uma nova era de relações com a China, que na era Trump se baseou numa competição extrema, nefasta, e que na era Biden se pretende de competição responsável, construtiva. O que até então tinha pouco significado para os americanos, como a questão de Taiwan ou os direitos humanos, ganhou relevância estratégica, reentrou na agenda.

A amnésia da era Obama em algumas destas matérias é agora o centro da discussão. Taiwan o ponto nevrálgico na tentativa de acalmar as hostes chinesas nas suas exaltações patrióticas, quiçá uma “moeda de troca” numa ou outra jogada política. Na era de Xi-Biden, esta questão permanecerá sem mudanças de posição, o status quo vai servindo como solução de paz no imediato, que os taiwaneses apreciam. Não importa fazer muitas ondas quando se aproximam as eleições locais na ilha e uma possível viragem para o Partido Nacionalista do Kuomintang (KMT) poderá trazer ventos mais amenos para Pequim.

O encontro de Bali tem na sua base todo este contexto, não se revertendo em substanciais mudanças estratégicas entre os dois lados, antes num acerto tático para uma competição harmoniosa. Washington tem na China o “maior desafio da sua politica externa”, como referiu o secretário de Estado, Anthony Blinken. E nada disto mudará, numa altura em que está em causa a supremacia americana e a defesa de uma certa visão do mundo pelos americanos. Absorta na perceção trágica da humanidade, envolta numa enorme religiosidade estrutural, continua a sua tentativa de purificação internacional. A China, na purificação de si própria e do seu passado, entende o mesmo, por isso nunca se comprometeu demasiado com os interesses de Moscovo. A parceria sem limites que acordou com o líder russo fica sujeita ao pragmatismo das necessidades. Putin esfria os ânimos, remete-se à sua desconsolada posição de ator secundário e nem aparece em Bali.

Ao contrário da Rússia, Xi e Biden afastam a possibilidade de usarem o nuclear para qualquer resolução de contendas futuras e abrem novas janelas de cooperação. Em suma, o frente-a-frente foi uma oportunidade para as duas principais nações do globo dizerem que vão continuar a competir na cena internacional, mas que esta competição não deverá passar os limites da razoabilidade. A fratura está aberta, mas que não se acelerem os argumentos de Tucídides, já experimentados na ancestral guerra do Peloponeso. Espera-se que este bom senso não seja apenas um exercício do momento, facilmente modificado quando as peças do tabuleiro geopolítico voltarem a mexer.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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