“Estamos a tratar a atmosfera como um esgoto”, disse Al Gore na COP27

No primeiro dia dos discursos dos chefes de Estado e de Governo na Cimeira do Clima, no Egipto, houve apelos a que haja vontade política para lidar com o aquecimento global.

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Al Gore falou na COP 27 Reuters/SERGIO PEREZ

Al Gore, ex-vice-presidente dos Estados Unidos, foi directo ao assunto. “Temos um problema de credibilidade, mas é por nossa escolha que continuamos neste padrão de comportamento”, disse, nesta segunda-feira, na COP27, no segmento da Conferência do Clima das Nações Unidas em que discursam os chefes de Estado e de Governo.

Gore usou uma referência religiosa para dizer que está nas nossas mãos inverter esse caminho: “Há um traço comum nas religiões do livro que é Deus dar a escolher aos humanos entre seguir a via das bênçãos ou das maldições.” Nós temos seguido a das maldições, disse, com a insistência nos combustíveis fósseis. Mas não tem de ser assim.

“Estamos a tratar a atmosfera como um esgoto aberto”, para onde lançamos gases com efeito de estufa, afirmou o galardoado com o Nobel da Paz em 2007. “Em média, cada molécula [de dióxido de carbono] permanece cem anos na atmosfera e a quantidade acumulada até agora captura tanto calor que se, fosse libertado, seria como 600 mil bombas de Hiroxima a explodir todos os dias no nosso planeta!”, afirmou Gore, num discurso veemente.

“Auto-estrada para o inferno”

São estes gases que são responsáveis pela subida da temperatura média do planeta. “Estamos numa auto-estrada para o inferno”, se não os controlarmos, afirmou o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres.

Os resultados vêem-se em várias catástrofes. “São as cheias que mataram 1700 pessoas no Paquistão, as ‘bombas de chuva’ na China, mais um milhão de pessoas deslocadas nas inundações na Nigéria há duas semanas e outro milhão depois no Chade. O rio Nilo está a ficar salinizado, o rio Mississípi no meu país está a secar, tal como o Eufrates e o Tigre. Ainda são poucas as áreas do mundo consideradas inabitáveis, mas prevê-se que na viragem do século haja mil milhões de refugiados climáticos a cruzar fronteiras”, exemplificou Al Gore.

Permanece aberta uma janela de oportunidade, mas só resta uma estreita faixa de luz. A luta global do clima será ganha ou perdida nesta década crucial. Uma coisa é certa: os que desistirem vão perder de certeza”, afirmou o secretário-geral das Nações Unidas, apelando ao trabalho em conjunto. “O nosso planeta está a aproximar-se de pontos de viragem que vão tornar o caos climático irreversível”, avisou.

“Podemos escolher as bênçãos, se deixarmos de subsidiar a cultura da morte, e optarmos pelas energias renováveis”, frisou Al Gore. “A Agência Internacional de Energia chamou à energia solar a mais barata da história. E África pode ser uma potência energética solar, tem 40% do potencial de produção desta energia. Isto é 400 vezes mais do que as reservas de combustíveis fósseis do continente africano”, referiu o ex-presidente norte-americano.

O que não podemos fazer é continuar a renegar os compromissos assumidos para o abandono dos combustíveis fósseis. “A primeira lei dos buracos é que, quando se está dentro de um deles, tem de se parar de cavar!”, afirmou Al Gore.

Mudar o financiamento

Para sair do buraco em que estamos, é preciso financiamento — uma questão posta na mesa pelos países em desenvolvimento, muitas vezes os mais vulneráveis às catástrofes causadas pela mudança do clima. “Venho de um país insular, que tem ambição mas não tem os meios para fazer a transição energética. Estamos limitados pela política seguida pelos países ricos”, disse Mia Mottley, a primeira-ministra de Barbados.

Mas Mia Mottley tem um plano para quebrar esses bloqueios, que passa pela reforma das instituições financeiras internacionais, o Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI). Quer que mudem as regras de financiamento dos países presos na armadilha dupla da dívida e dos efeitos das alterações climáticas: precisam de dinheiro para se adaptarem às mudanças do clima ou lidar com desastres como ciclones ou secas, e isso enreda-os num ciclo interminável de dívida.

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Vítimas das cheias no Paquistão a receber ajuda por via aérea: o primeiro-ministro diz que o seu país vai precisar de um alívio da dívida externa e vai pedir compensações por danos causados pelo clima Damir Sagolj/REUTERS

A chamada “Agenda de Bridgetown” de Mottley passa por garantir a liquidez de emergência a estes países, através de vários mecanismos. A concessão de empréstimos em termos mais favoráveis e canalizar pelo menos 100 mil milhões de direitos especiais de saque (um instrumento monetário internacional, criado pelo FMI) é um deles. A expansão dos empréstimos dos bancos multilaterais de desenvolvimentos em um bilião de dólares, mobilizar financiamento do sector privado para a mitigação (redução das emissões) e um fundo de reconstrução após um desastre climático são outras propostas.

“Temos de lidar com o tema das perdas e danos após desastres relacionados com as alterações climáticas [os países mais vulneráveis querem compensações que seriam pagas pelas nações mais ricas e que emitiram a maioria das emissões de gases de estufa na atmosfera]. Mas, além dos Estados, temos de trazer as empresas de combustíveis fósseis para a discussão”, disse Mia Mottley. Sugeriu a ideia de pagarem dez cêntimos por cada dólar dos seus lucros para um fundo de perdas e danos.

Por exemplo, o primeiro-ministro paquistanês, Shehbaz Sharif, disse que o seu país vai precisar de um alívio da dívida externa e vai pedir compensações por danos causados pelas alterações climáticas, para recuperar das cheias catastróficas, que custaram ao país cerca de 30 mil milhões de dólares. “Mobilizámos todos os recursos disponíveis para o esforço nacional de recuperação”, mas não é suficiente, disse o governante, numa conferência de imprensa com António Guterres.

O secretário-geral da ONU lançou o plano de acção para o Sistema de Alerta Precoce de fenómenos meteorológicos extremos, que as alterações climáticas estão a tornar cada vez mais frequentes e intensos. “Custará o equivalente a 50 cêntimos por pessoa por ano durante os próximos cinco anos cobrir toda a população da Terra com este sistema”, diz um comunicado da Organização Meteorológica Mundial.

As Nações Unidas pedem um investimento inicial de 3200 milhões de dólares para este sistema, anunciou António Guterres. “As comunidades vulneráveis em pontos sensíveis das alterações climáticas estão a ser apanhadas de surpresa por uma cascata de desastres climáticos, sem terem meios de alerta precoce”, disse o secretário-geral da ONU. Os habitantes de África, o Sul da Ásia, a América do Sul e Central e os Estados-ilha têm 15 vezes mais possibilidades de morrer devido a catástrofes relacionadas com as alterações climáticas, contabilizou. “Estes desastres já fizeram mais deslocados do que a guerra e a situação está a piorar”, afirmou.

Apoio de Macron

O Presidente francês, Emmanuel Macron, apoiou as propostas de Mia Mottley. “Quando os países são afectados por um choque climático, isso deve ser levado em conta. Deve mudar a nossa forma de pensamento. Estamos de acordo com a primeira-ministra Mia Mottley”, afirmou. Precisamos de empréstimos em condições mais favoráveis”, declarou.

Macron lançou um desafio: que até à reunião da Primavera do FMI e do Banco Mundial, estas instituições “apresentem iniciativas inovadoras para que haja soluções de liquidez que levem em conta a vulnerabilidade climática e mobilizem fundos privados”.

Fica a esperança do que disse Al Gore: “Comecei por dizer que temos um problema de credibilidade, mas podemos resolvê-lo. Lembrem-se de que a vontade política é um recurso renovável.”

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