“Um ódio absoluto à guerra”

Ambos, Kraus e Berg, um no teatro, outro na música, dão testemunho do seu radical inconformismo perante a “fatalidade” da guerra. Convém revisitá-los num momento de perigo como o que atravessamos.

O Teatro Nacional de São João devia repor em cena a peça Os últimos dias da humanidade, agora numa versão mais curta e itinerante. A admirável tradução de António de Sousa Ribeiro, que restitui magistralmente, em português, os diferentes linguajares quotidianos da Viena da I Grande Guerra, desde os da corte e de altos funcionários até aos dos cocheiros, ardinas, soldados rasos, passando por toda a gama de “culturas locais” (gente de teatro, jornalistas, burocratas, empregados de café, prostitutas, etc., etc.), devolve-nos o que o original de Karl Kraus tem de mais genial e acutilante: o caráter de citação. É como se as vozes da época recuperassem a sua autenticidade e voltassem a fazer-se ouvir, quais “citações acústicas”, como lhes chama Elias Canetti.

À maneira do estilo do Die Fackel (O archote), que celebrizou o autor, basta a citação para virar do avesso o citado. Parece que Karl Kraus nada mais faz senão citar, mas cada citação é uma machadada no imponente edifício da retórica nacionalista e militarista. A exposição ao ridículo é atroz no seu alcance trágico-cómico: deixa-nos tão horrorizados como ao próprio autor. Tem razão, também aqui, Canetti, quando chama a Kraus “o mestre do horror”:

“Quem quer que ainda hoje folheie Os últimos dias da humanidade convence-se disso facilmente. Salta aos olhos como ele vê sempre lado a lado aqueles que a guerra arruinou e os que ela insuflou: estropiados e especuladores, o soldado cego ao lado do oficial que lhe exige a continência, o nobre rosto do enforcado sob a carranca flácida do verdugo – coisas que não são nele contrastes banais como aqueles a que o cinema nos habituou, antes se nos apresentam carregadas do seu pleno e jamais apaziguado horror. Quando ele as pronunciava, as pessoas ficavam paralisadas a ouvi-lo; o seu horror, sempre de novo regenerado pela força da visão originária em cada leitura (e ele podia ler as peças as vezes que quisesse) transmitia-se a toda a gente. Desse modo, conseguia criar nos seus ouvintes, pelo menos, um sentimento uno e inabalável: o de um ódio absoluto à guerra.”

E Canetti acrescenta: “Foi preciso vir uma II Guerra Mundial e, após a destruição de cidades inteiras, o verdadeiro produto dela, a bomba atómica, para que este sentimento se generalizasse e se tornasse a bem dizer uma evidência. Karl Kraus foi, a esta luz, como que um precursor da bomba atómica, cujo terror já se continha na palavra dele. Desse seu sentimento nasceu conhecimento, a que os detentores do poder têm de se abrir cada vez mais: o de que as guerras não fazem sentido nem para os vencedores, nem para os vencidos, e por isso não podem acontecer, e o de que a sua irrevogável eliminação é tão-só uma questão de tempo.”

Passaram cem anos sobre a peça de Kraus e mais de cinquenta sobre o comentário de Canetti, e as guerras não só continuaram como são hoje glorificadas, preparadas, alimentadas e transformadas em telenovela. A peça de Kraus, porém, nada perdeu da sua atualidade.

Quando subiu ao palco no TNSJ em 2016, o espetáculo subdividia-se em três noites, numa tentativa de aproximação às 220 cenas, 500 figuras e 10 horas estimadas de representação. Pouco antes, o Burgtheater, em Viena, apresentara uma versão condensada em uma só noite (4 horas). Aqui as cenas eram intercaladas pelas intervenções de uma banda de música completa (da Telekom de Viena), que emergia, de tempos a tempos, a tocar marchas. O efeito era demolidor. Acentuava o grotesco de que o horror, não raro, se reveste.

É bem possível que a ideia da banda tenha sido suscitada pela Marcha, de Alban Berg, a última das três peças para orquestra, op. 6, estreadas em Viena em 1923, por sinal o mesmo ano em que pela primeira vez foi levado à cena um fragmento – o epílogo – da peça de Kraus. Tal como esta, a Marcha de Alban Berg é uma citação: uma marcha “às avessas”, isto é, desmontada como categoria ideológica nos seus clichés constitutivos (tais quais os das marchas intercaladas na encenação do Burgtheater), e terminando em fortíssimo (incluindo um seco golpe de martelo), que, para cúmulo do grotesco, recai na parte fraca do tempo fraco do último compasso... Um falso desenlace que prenuncia a catástrofe.

Ambos, Kraus e Berg, um no teatro, outro na música, dão testemunho do seu radical inconformismo perante a “fatalidade” da guerra. Convém revisitá-los num momento de perigo como o que atravessamos.

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