Elias Canetti, o amante das línguas

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O primeiro volume de uma trilogia autobiográfica de um dos escritores mais importantes do século XX.

Uma criança de dois anos e uma ama, que é ainda bastante jovem, saem de casa todas as manhãs. A criança vai ao colo da ama. Já na rua, há um homem que se aproxima, e diz à criança para mostrar a língua. Depois abre um canivete, chega-o perto da língua da criança e diz que a vai cortar. Aterrorizada, a criança não consegue recolher a língua. Quando a lâmina está quase a tocá-la, o homem afasta o canivete e diz que hoje ainda não, que só a cortará amanhã. E no dia seguinte a cena repete-se. E também no outro. Isto acontecia para que o pequeno Elias não contasse a ninguém da existência do amante da jovem ama. E resulta, pois durante dez anos essa criança não fala sobre este acontecimento.

Este quadro de horror, assim resumido, era a mais antiga recordação do escritor de língua alemã Elias Canetti (1905-1994), que a descreve no volume autobiográfico "A Língua Posta a Salvo" (o primeiro de uma trilogia que foi aparecendo entre 1977 e 1985) agora publicado por cá pela editora Campo das Letras.

Elias Canetti (prémio Nobel da Literatura em 1981) nasceu na cidade portuária búlgara de Rutschuk, localizada na margem inferior do Danúbio, numa abastada família de judeus sefarditas. Como era normal entre os sefarditas, fosse qual fosse o país em que viviam, os seus membros falavam entre si e em família o ladino ("castelhano antigo a que se foram juntando muitos vocábulos dos países da diáspora, em especial Turquia e Grécia"). Em casa, o búlgaro era apenas falado entre as criadas de servir arregimentadas nas aldeias distantes. Nessa cidade de Elias Canetti, podiam ouvirse num só dia sete ou oito línguas. Lá viviam turcos, gregos, albaneses, arménios, ciganos, romenos e também alguns russos. Era por isso importante estar-se habilitado a falar várias línguas. E cada um contava quantas sabia e falava disso com orgulho. (O avô do jovem Elias vangloriava-se de falar dezassete, pelo menos de "conhecer alguns vocábulos de dezassete línguas", corrigia a mãe.)

Os que falavam apenas búlgaro "passavam por estúpidos". Mas foi exactamente em búlgaro que Canetti ouviu as primeiras histórias, cercado pelas raparigas da casa que, quando escurecia, se anichavam nos sofás junto das janelas e começavam a contar histórias de lobisomens e de fantasmas, uma mais horripilante do que a outra. O pequeno Elias ficava anichado entre as criadas, a ouvi-las, até que os pais voltassem a casa. Passados muitos anos, ele consegue ainda recordar muitas dessas histórias, mas lembraas, estranhamente, numa outra língua que ele então ainda não aprendera. "Não posso pegar num livro com lendas dos Balcãs sem reconhecer imediatamente muitas delas. Tenho-as presentes em todos os pormenores, mas não na língua em que as ouvi.

Ouvi-as em búlgaro, mas conheço-as em alemão, esta tradução misteriosa é talvez o mais curioso de tudo o que tenho para contar da minha juventude e, como o destino linguístico da maior parte das crianças se processa de outra maneira, se calhar eu devia dizer alguma coisa sobre isso."

Maldição

E é essencialmente acerca disso que Canetti discorre neste volume: da importância de uma língua, da sua aprendizagem, do papel fundador das línguas na estruturação das personalidades e no adquirir de uma consciência individual, de como a aprendizagem de uma língua pode ser o único caminho para outros universos vivenciais.

"A Língua Posta a Salvo" abrange o primeiro período da vida do escritor búlgaro (mais tarde adquire também a nacionalidade inglesa), o tempo da infância e da juventude: entre 1905 e 1921, altura em que a mãe o leva do "paraíso de Zurique", onde vivera e estudara sozinho durante três anos, "os únicos anos completamente felizes".

O pai de Canetti era um comerciante que ansiava pela saída da Bulgária e assim poder deixar de estar sob a pesada opressão familiar, sob a alçada do velho patriarca Canetti. Decide então partir para Manchester, onde existia uma extensa comunidade sefardita, com a mulher e o filho Elias, que tem então seis anos. Mas o avô amaldiçoa o filho. E o facto de o pai de Elias Canetti ter morrido poucos anos depois da sua chegada a Inglaterra, acentua ainda mais esta maldição. Chegados, a criança depressa vai para uma escola inglesa. Os pais, que até então falavam com ele em ladino, passam a falar apenas em inglês, mas entre eles os dois continuam a falar em alemão (ambos tinham estudado em Viena), "a língua em que se amavam".

O primeiro livro que Elias lê em inglês, oferecido pelo pai, é uma versão para crianças de "As Mil e Uma Noites", "The Arabian Nights". Acabada essa leitura, a criança teve de contar ao pai o que lera. Depois desse livro veio outro, e depois outro. Chegaram assim os contos de Grimm, Robinson Crusoe, as "Viagens de Gulliver", os contos a partir de Shakespeare, "Dom Quixote", Dante, Guilherme Tell. Todos os livros tinham imagens, mas Elias preferia as histórias. Falava com o pai sempre que acabava de ler um livro, mas ele nunca lhe disse que as histórias não eram verdadeiras. E Elias ficou-lhe para sempre agradecido por isso. Canetti confessa: "Seria fácil mostrar que quase tudo aquilo que mais tarde me veio a formar estava contido nestes livros, que eu li por amor ao meu pai, no meu sétimo ano de vida. Das personagens que mais tarde nunca mais me largaram só faltava Ulisses."

O gosto pelas histórias tinha ficado já marcado. Canetti confessa que por esses anos brincava quase sempre sozinho, ou melhor, as suas brincadeiras quase que se resumiam a "falar com os tapetes". Aos motivos, geométricos ou não, que enchiam os muitos tapetes espalhados pela casa, "transformavaos" Elias em "pessoas". Depois inventava histórias em que "elas" apareciam, histórias em que ele também entrava. Quando algum dos irmãos, ou a governanta, andavam por perto, ele tinha o cuidado de falar baixinho ou de imaginar apenas as histórias, sem mexer os lábios. "Nunca me cansava das pessoas do tapete e conversava horas seguidas com elas."

Aprendizagem traumática

Após a morte do pai, a mãe viúva decide mudar-se com os filhos para Viena, a cidade pela qual se apaixonara havia anos, onde estudara e conhecera o marido. Corria o mês de Maio de 1913. Pelo caminho, ficaram em Lausanne durante os meses do Verão, e foi durante esse tempo na Suíça que a mãe decidiu ensinar-lhe alemão. Mas adoptou um método que em nada agradava ao pequeno Elias de 11 anos. A partir de um livro a que ele não tinha acesso, ela dizia frases que ele tinha que repetir em alemão e depois também o seu significado em inglês. E memorizar tudo, frases que ele ia repetindo ao longo do dia onde quer que estivesse. Foi uma aprendizagem traumática, e Canetti ilustra-a bem nesta longa citação: "Já não sentia o vento, não ouvia a música, tinha sempre na cabeça as minhas frases em alemão e o seu significado em inglês.

Quando podia, esgueirava-me para outro lado e praticava-as em voz alta sozinho, o que fazia com que repetisse com a mesma obsessão um erro que tivesse feito e frases certas. Não tinha qualquer livro que me servisse de controle, ela recusava-mo, teimosa e desapiedadamente, sabendo perfeitamente a afeição que eu sentia pelos livros e como tudo teria sido mais fácil com um livro. Mas a ideia dela era que uma pessoa não devia tornar as coisas fáceis; que os livros eram maus para as línguas; que estas deviam aprenderse oralmente e um livro só não era prejudicial quando já se sabia alguma coisa da língua. (...). O terror em que eu vivia, achava-o ela pedagógico."

Com a chegada a Viena, e já na escola, Canetti tem a primeira experiência dos efeitos da guerra: o pão passou a ser amarelo e preto, com misturas de milho e outros cereais a que ele não estava habituado, as pessoas faziam filas diante das lojas de víveres, onde as crianças também tinham de permanecer. A vida começava a ser mais difícil, e a saúde da mãe deteriorava-se, chegando a ter de passar temporadas num sanatório. É também em Viena que é pela primeira vez confrontado na escola com a rejeição provocada pela sua condição de judeu. A mãe, à noite, passa a ler-lhe Strindberg em vez de Shakespeare.

Em 1916 era difícil conseguir uma autorização para sair da Áustria. Mas a mãe decide que tinham que deixar Viena e mudam-se para Zurique, onde passam a viver em modestos quartos alugados. A neutralidade suíça durante a guerra tem um preço para os Canetti.

A partir de 1919 Elias Canetti passa a viver sozinho em Zurique, pois a mãe e os irmãos voltam a Viena. É na Suíça que Canetti escreve o seu primeiro texto literário, uma peça em verso intitulada "Junius Brutus", que oferece à mãe. O facto de ele ter escolhido a língua alemã para sua língua literária (escreveu em alemão durante toda a vida apesar de ter vivido os últimos quase 50 anos em Londres) não é, para Canetti, explicável. Há estudiosos que a atribuem à sua devoção juvenil pelo escritor Karl Kraus, de quem ele diz ter-se tornado um admirador e "escravo devoto".

Acabado de ler este "A Língua Posta a Salvo", fica-se ansioso pelos próximos dois volumes da trilogia, que a editora promete para 2009.

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