E se todo o mundo é

A 23 de Março, um dos mais importantes festivais de Verão do país, o Vodafone Paredes de Coura, divulgava o seu cartaz. Em protesto contra a falta de paridade, de género e não só, do contingente de música portuguesa, um movimento de protesto formou-se entretanto entre reuniões Zoom e conversas no Instagram. Crónica desses dias de luta, na primeira pessoa.

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Adriano Miranda

Quinta-feira, 23 de Março, dez e tal da noite.

Entre caixotes abertos e copos embrulhados em jornal, faço uma pausa nas mudanças e abro o meu Instagram privado, em modo bicho que finge de morto, virado ao contrário e com as patas tesas, como nos documentários do Attenborough. Uma só notificação: a Bia Maria partilhou canções nas suas histórias e ali estava eu, a número 44. Sei quem é a Bia: voz meiga, muito talento. Curiosa, cliquei repetidamente no lado esquerdo do ecrã para saber como tinha surgido a corrente. Aparece a Bia, assoando o nariz: “Vocês deixam-me ainda mais congestionada do que eu já estava, mas, honestamente, não me venham com as vossas chachadas e comentários machistas e sexistas, porque não é uma percentagem assim tão maior de homens a fazer música em Portugal em comparação com as mulheres. Eu vou encher isto de spam, mas…”. Respondo: “Adoro [coração vermelho], posso partilhar?… a cena de ficares congestionada com machismo é para lá de genial.” Deve ter acontecido alguma coisa. Volto para as mudanças.

Uma outra pausa e eis que vejo a publicação do Festival Paredes de Coura: “Em agosto regressamos de vez, com um dia completo dedicado à música portuguesa”. Ena, fico contente, dois toques no ecrã, aparece o coração, significa que gosto disto. Leio os nomes, franzo o sobrolho, não devo estar a ver bem, volto a ler. Só homens?, releio e conto pelos dedos as mulheres. Rita Vian. Margarida Campelo. Cláudia Guerreiro. Tem de haver mais. Instinto: dois toques no ecrã, já não gosto disto.

Num sobressalto, sobe a angústia, originada em zero trabalho, que me fez tornar as páginas privadas e deixar de seguir os colegas para fintar a ansiedade pós-pandémica de planos suspensos e estragados e da minha incapacidade física. Se eu não vir, talvez não me lembre. Tentar mudar de profissão. Desistir da música? Agora, com aquele post, que prometia um dia dedicado à música portuguesa, depois de dois anos de marasmo cultural, uma sensação dupla: de alívio pelos colegas programados e de angústia pela incerteza de futuro, pois revelou-se um outro problema que eu já havia suspeitado. Afunilou-se a comunidade. Adeus à música feita por mulheres, pela comunidade LGBTQiA+, e parca ou nula representatividade cultural.

Desta vez, a angústia ficou na garganta num nó mais apertado, nó de uma invisibilidade sobre outra longa invisibilidade: dois anos de pandemia e confinamento, cancelamento de eventos e planos, cultura a zeros, medo e concertos por telemaquinetas, primeira abertura de salas a um terço da lotação, União Audiovisual a recolher fundos para alimentar famílias do sector até hoje; apoios tardios do Ministério da Cultura, escassos e inconstantes, e outro confinamento. Artistas que “se deveriam reinventar” entre zaragatoas e desmarcações, tudo isto em pleno luto colectivo e pessoal. E há mais: “a crise é uma oportunidade” para a “cultura que salva os cidadãos confinados”. Em paralelo, vieram à tona as desigualdades, o racismo e o machismo e outros ismos, numa curva exponencial crescente, sem vacina para esses vírus centenários.

Em 2022, sobejam as desigualdades, as dúvidas existenciais e as dívidas concretas, porém, rufam os tambores e, voilà!, até parece que está tudo bem, já que abriram as salas em lotação completa e se tiraram as máscaras. Na música há quatro temporadas de discos acumuladas numa só. A imprensa já não tem espaço para todos os lançamentos, que se precipitam qual baralho de cartas espalhado no ar, em suspenso — álbuns, EP e singles terminados numa brutal taxa de esforço financeiro e emocional. Não quadruplicaram os palcos. Caídos e erguidos os governos, a cultura ainda não tem um por cento do Orçamento do Estado. A cultura pouco come, mas já não se fala nisso. Há que ser positivo, pois! Sobeja a viralidade e a virilidade. E, quando a onda da moda, dita trend, esmorece, os assuntos morrem e as resoluções morrem também.

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Voltando a Março:

A música portuguesa ficou sem mulheres? Eu sei que não. Joana Espadinha, Aline Frazão, Nenny. Monday. Gisela João. Eu sei que não. Capicua. Maria Reis. Eu sei que não e vêm os pedaços das canções delas, todos misturados na ponta da língua, lateja a indignação na ponta dos dedos, e comento, zonza: “Boa, Vodafone, um dia inteiramente dedicado às [três beringelas, vulgo pénis] portuguesas. Incrível.” Estou chateada. Volto a escrever à Bia: “Só vi agora o post”, como quem diz “agora é que percebi”. Comento, de novo, movida a sangue quente, uma lista de nomes DELAS, e apelo aos colegas músicos, aos que estão programados, que se pronunciem. Há espaço para todes, a música não é assim, a música sempre foi inclusiva. Certo? Umas linhas abaixo, dou com a torrente de indignados. Entre outres:

Fadobicha: “É absolutamente inacreditável terem um cartaz destes em 2022! Não há mulheres na música portuguesa? Não há pessoas queer na música portuguesa?”

Flamabranca: “mas só há homens na música portuguesa?”

Catarina Valadas: “é literalmente um cartaz do caralho.”

Os dedos deslizam no ecrã, entre comentários e mensagens privadas. Por todo o lado, uma certeza: temos de fazer alguma coisa.

Agora, é o Paredes de Coura a fingir-se de morto, bem teso na beira da estrada, à espera que as feministas desistam de o “morder”. A invisibilidade é um acto de violência: violência emocional de nos desprezarem, violência financeira de não sobrevivermos do nosso trabalho.

Depois de uma hora vertiginosa, a Bia Maria escreve-me, às vinte e três e quarenta e nove: “E temos de expor estas situações sempre e mais vezes. E mais juntas.” Clico duas vezes. Coraçãozinho vermelho. Gosto mesmo disto.

Sem pensar, partilho a foto de um mamilo num corpo pixelizado: pode ser homem, pode ser mulher, pode ser trans, pode ser queer. Apenas o mamilo está nítido, tudo o resto são pixéis. Apelo a mais igualdade e digo, entre outras coisas, que sinto vergonha alheia, pois “há muito talento ausente e sem oportunidades”. Exausta de mudanças e de não mudanças, fui dormir, que a Internet não muda nada e eu tinha muita coisa para encaixotar.

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Acordei na expectativa de uma resposta aos comentários indignados, que não veio. Há polémicas às quais as marcas reagem em poucas horas, retractando-se, nem que seja para cumprir o politicamente correcto. Neste caso, há um silêncio mais gritante do que o cartaz. É coerente: se não nos vêem, provavelmente não nos escutam e tão pouco nos lêem. Já eu, tinha centenas de notificações, likes, comentários e mensagens ao post do mamilo não pixelizado, e nem entendi bem como é que o apelo viralizou da noite para o dia.

Mensagem de Filipe Sambado, às oito da manhã: “Faltou mencionar representatividade cultural poc [people of colour], pq só estão pessoas brancas”. Respondo: “Vou acrescentar, cheguei a pensar nisso só que não conheço todas as bandas. Obrigada!”. Fui editando e incluindo nomes na lista. Nos comentários surgiram dezenas de menções. Meio dia e dezanove, Catarina Valadas, em mensagem privada, na sequência de uma conversa em comentários: “Mais que tudo: era/é necessário. Vamos falando com pessoas e pedindo conselhos e juntamo-nos mais a sério num Zoom para a semana para pensarmos várias e juntas?”. Reajo: “Isso!”, e a seguir ela apresenta-se: “Siga! E prazer. Catarina Valadas.” Coração vermelho.

Entrei em modo avião e continuei a rasgar páginas dos jornais cronologicamente invertidos em pilha no chão da sala. “2020: Os melhores lugares para cumprir o confinamento”. “Quem é Ventura”, na capa da Visão. George Floyd. Os primeiros casos de covid em Portugal. China confinada. Quando chegámos ao serviço de loiça da minha mãe, já os jornais eram pré-pandémicos e prometiam um 2020 alegre e activista, com a Greta Thunberg numa capa de 2019. E nós, presas no gesto de rasga página, pousa prato, embrulha prato e empilha prato, divagávamos sobre a condição feminina. Éramos três mulheres à volta da mesa a proteger o serviço de porcelana: “2022. Aqui estamos. Nos anos 80, as pessoas andavam por aí de topless e agora, de repente, é tudo muito pudico.” Mal eu sabia que, ao sair do modo avião, iria ler, sem modos: “Removemos a tua foto porque desrespeitava as nossas normas da comunidade relativa a nudez ou actividade sexual.”

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Actividade sexual não houve. Nudez, sim, de um mamilo. Li as normas da comunidade, aprendi que o mamilo feminino é considerado nudez. O masculino não. O mamilo feminino só é permitido em actos de protesto, actos de sensibilização (problemas de saúde, por exemplo) e em fotos que retratam a amamentação, o parto e o pós-parto. O mamilo masculino não tem regras. Perguntei ao Instagram por que motivo apagou a foto: não havia forma de saber o “género do mamilo” — o corpo retratado estava pixelizado. Além disso, tratava-se de um acto de protesto face à sistémica invisibilidade das profissionais da indústria musical portuguesa, através de um apelo às poucas pessoas que me lêem. Pode o Instagram censurar um mamilo sem saber a que género pertence? A pergunta expõe o ridículo. A foto cumpria uma das três excepções permitidas. O Instagram reviu, veio de novo um “removemos a tua foto porque desrespeitava as nossas normas da comunidade relativa a nudez ou actividade sexual”. Azarinho.

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Não sei o que me incomodou mais. Se foi alguém dar-se ao trabalho de cancelar um post viral útil, calando-nos de novo, uma pessoa de pantufas e roupão cheio de migalhas, refastelada no sofá, vamos calar esta histérica — assim os imagino para ser mais giro e fácil para mim. Decerto não foi: ai, estou tão ofendido/a com a probabilidade de ser um mamilo feminino! Ou se o que me incomodou foi o Instagram ignorar o direito ao protesto e a existência de mamilos, como quem anuncia que já não vamos a tempo de mudar nada disto. Liberdade, filha? Querias. O teu mamilo só serve se fores mãe ou se houver doença. Beleza, reflexão, mudança, existência? Imagino uma mesa corrida, tipo júri, onde estão os senhores que escrevem as tais normas da comunidade, altivos, rindo-se na minha cara. Não há diálogo.

O Instagram é um quadrado dentro de um rectângulo onde passamos parte da vida a deslizar os dedos sem nunca alcançar o êxtase. Vistos de fora somos uns seres curvados, deslizando o polegar com demasiadas expressões faciais contidas, seres inertes, alheios à realidade. Há bons lugares por onde deslizar os dedos, aqui na realidade, com resultados bem melhores. Actividade sexual, Instagram? Seria tempo mais bem gasto. Deslizá-los por guitarras e pianos também. A foto, essa, já tinha viralizado pelas redes sociais uns anos antes e não tinha sido censurada — era trendy. Mensagem de _danielaazul_: “Entretanto descobri não o autor directo da foto que publicaste, mas o movimento do qual faz parte. #pixonproject. Manuel Ceballos.”

Fui acompanhando a onda viral entre celofane e livros em pilha: afinal, tinha três mudanças no espaço de uma semana, a Mãe para casa da Avó, tralhas de três gerações para guardar num armazém no Ribatejo e eu a arriscar viver sozinha com a economia neste estado. A Bia criou uma playlist de canções chamada EXISTIMOS, que serviu de banda sonora à última noite na casa antiga e ao carregamento da carrinha das mudanças. A Beatriz Nunes publicou vários posts desconstruindo os meandros da invisibilidade com uma clareza e paciência de louvar: A tese da meritocracia — “Tenho más notícias. A meritocracia é uma utopia que, infelizmente, não reconhece que todas as pessoas partem de contextos diferentes, umas com situações mais privilegiadas do que outras. Portanto, a meritocracia perpetua situações de privilégio, e mantém/justifica o status quo”; O recorrente eu não sou machista como os outros e o “não estão a exagerar?” — “É compreensível que seja difícil ver a discriminação de género quando se tem um lugar de privilégio”; A importância dos aliados — “És uma pessoa importante nesta conversa. Não te queremos excluir nem cancelar. Não entres nesta conversa defensivo, escuta.”; O lugar de fala — “Ter em atenção qual é o teu lugar de fala. És uma pessoa que vive experiências discriminatórias com base no género/sexualidade/cor?”

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A Capicua reagiu: “Dá um cansaço ter de explicar o óbvio.” Se dá. E nem se compara ao das mudanças. É pior.

Recebi uma mensagem da Vera Marmelo: “Joana, este grupo reúne mulheres na área da cultura (...) está a ser discutido este assunto do Paredes, se te quiseres juntar.” Por dentro, ainda alguma desilusão de sentir o silêncio dos colegas programados que não reagiram ao apelo. Terá sido o mamilo? Claro que não. Boto as fichas no privilégio. Felizmente, a censura do Instagram não foi a tempo de travar a comunicação entre aqueles para quem o cartaz foi a gota de água. Não é o único cartaz assim, há que ser franca. São muitos. Mas, este foi um gatilho que calhou no momento preciso em que estamos desejosos de ousar um palco. Foi como dizer que a música portuguesa que tem direito a regressar num dia extra é apenas aquela, a viril e a branca. Que os restantes podem permanecer calados. Que a sua ausência não é sentida. Como se não existíssemos.

A shesaidso disponibilizou o seu grupo de WhatsApp para um diálogo que era aceso e confuso. Entrámos no turbilhão de chats, indignações e reacções, que deram lugar a algo há muito esperado: o reconhecimento das experiências partilhadas e o desejo conjunto de um futuro mais inclusivo e diversificado. Por dentro, uma energia inédita no meio da exaustão; mesmo com a carrinha das mudanças atolada no meio do nada, fui tomada pela alegria de assistir à comunicação desenfreada entre pares. Uma certeza: não estamos sós.

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Falta abrir espaço. Onde estão as pessoas: mulher, neutro, queer, negro, trans, e tantes outres? Há mais por escutar e conhecer: vozes, pensamentos, línguas, emoções, peles, timbres, mamilos, palavras, vulvas, melodias, ritmos e reflexões na primeira pessoa, sem a mediação dos privilegiados — eu incluída nestes últimos, também. Falta sentir a provocação e a arte de todes esses seres. Falta-nos cantar em uníssono as suas palavras, em catarse colectiva. Saberemos nós onde elas nos poderão levar? A cultura come-se com as emoções e os sentidos. É assim que ela nos dá sentido. Foi claro desde 2020: alimentámo-nos, confinados em casa, com a liberdade que a cultura nos deu a comer. A refeição não está completa, há ausência de tantes na cultura que estamos débeis enquanto comunidade. Pequenos e bacocos. Melindrados até para usar a voz para apoiar os nossos pares? Em 2022?

Criou-se um subgrupo de trabalho. Arredei algumas tralhas na casa nova e aconteceu a primeira reunião de Zoom, pontuada por apresentações de caras e vozes, emoções validadas e pelo poder de regeneração na vulnerabilidade partilhada. “Estamos só nos primeiros passos,” disse a Mariana Bessa. Muda-se o ser, muda-se a confiança. Desde então, no meio da rentrée com vírus, temos andado, sem viralidade, mas com intenção, a indagar como se poderá dar a volta de forma construtiva aos hábitos da instituída comunidade cultural patriarcal, à gritante falta de oportunidades, ao silêncio e à invisibilidade.

Mudam-se os tempos.

Quarta-feira, 4 de Maio, uma e tal da manhã.

Mudei de casa há um mês. Desembrulhei as notícias do passado dos copos e pratos. O Paredes de Coura não respondeu nem reagiu. Acrescentou algumas, poucas, mulheres. Ninguém o quer cancelar. Queríamos ser vistas e escutadas, vistes e escutades. Mas são paredes de ouvidos moucos. É pena. Às dez da noite, a representante da marca declara, em directo na TV, que a pluralidade é um valor que a Vodafone defende muito. Mas, se não chegou a acontecer um diálogo, a pluralidade é só para a fotografia? Isso tem um nome; aliás, vários nomes, chama-se: (acrescentar prefixo)-washing. Lavam daí as suas mãos. Parece que é, mas não é. E não aquece o coração. Ainda queremos diálogo, e não é só sobre o Paredes. Queremos pluralidade a sério. O querer tem muita força. Já lá vai o tempo de parecer. O grupo de trabalho ganhou um nome escolhido democraticamente entre as sugestões de todes — EXISTIMOS+. Existimos mais.

Celebrámos o Festival Músicas do Mundo, que se anunciou nas redes com um cartaz no feminino, assumindo o desequilíbrio de representatividade e querendo fazer parte de um diálogo e de uma solução. Haverá resposta mais construtiva do que abrir espaço, assumir o problema e dar lugar à música de mulheres, música com ovários e mamilos, música queer, trans, dos mais variados géneros, tradicional e progressiva, lasciva, calma, activista, angelical, negra, branca, latina, multicultural e com as mais diversas e maravilhosas nuances? Não creio. Como sublinhou a Aline Frazão, numa troca de mensagens sem consensos acerca de quotas na programação, a discriminação positiva é urgente: “As pessoas silenciadas só terão voz se tiverem espaço. Discriminação positiva é isso, um acto de reparação política que tem em conta que é preciso muito para mudar o estado das coisas. A consciencialização dos privilegiados nem sempre se alcançou através de consensos.”

São precisas quotas? Vamos a isso. Mudam-se as vontades. Vontades também dos objectivos de desenvolvimento sustentável da UNESCO, ponto número 5, “Alcançar a igualdade de género e empoderar todas as mulheres e raparigas”, entre outros: “Acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e raparigas (...)/ Garantir a participação plena e efectiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança, em todos os níveis de tomada de decisão, na vida política, económica e pública/ Realizar reformas para dar às mulheres direitos iguais no acesso aos recursos económicos, bem como à propriedade e ao controlo sobre a terra e outras formas de propriedade, serviços financeiros, herança e recursos naturais, de acordo com as leis nacionais”.

É possível esta mudança no universo da cultura, mais especificamente no da música? É. O movimento Keychange tem desenvolvido um trabalho de apoio e representação dos menos representados, apelando às organizações por melhores práticas na indústria no campo da igualdade de género, e tem resultados bem visíveis.

No rescaldo de mais um 25 de Abril, celebrado de novo pelas ruas, sei que a Liberdade é bem mais do que existir, é coexistirmos numa pluralidade de vozes que se escutam e se apreciam. A música é de todes: músicos, técnicos, programadores, autores, intérpretes, imprensa, dos que contribuem nos bastidores para que chegue ao público. A música é do público. A representatividade, em cima de um palco, vale o futuro. É esse o poder do palco: a identificação, o reconhecimento no outro que nos canta. Quanto mais nos unirmos com o objectivo de uma comunidade mais justa, melhor. Já não era nada mau querer ser uma parte activa de uma comunidade que se vê e se cuida no concreto, nos pequenos e nos grandes gestos diários. Tomando sempre/ Novas qualidades. Tomando sempre/ Novas qualidades.

5 de Agosto — Um cavalo de Tróia?

O cartaz do Paredes de Coura está espalhado pelas ruas em antecipação do evento. Um dos festivais mais bonitos de Portugal. Justiça lhe seja feita: quase nada se compara aos mergulhos no rio, ao jazz na relva e ao anfiteatro natural.

Fui ao centro da minha nova vila e aproximei-me do múpi do festival. Li os nomes, tentei perceber se já era mais equilibrado — era igual ao de Março, igual ao cartaz-gatilho que nos uniu. Algo chama a atenção. As bandas, ilustradas, têm as suas caras estilizadas, parecem pichadas, como os muros das cidades. Será propositado? A semelhança é flagrante. Os olhos e narizes parecem rabiscos de criança e há pilinhas por todo o lado. As lágrimas de riso escorrem-me pela face. A vizinha idosa passa por mim, vê-me em prantos e olha intrigada para o cartaz, enquanto estou a um palmo do múpi, a rir e a ver pilinhas. Terá o ilustrador lido o comentário da Catarina Valadas e prestado homenagem à nossa indignação? Partilho a ironia com o grupo. A Catarina pergunta-se: “Quem é o ilustrador? Estará a piscar o olho aos nossos comentários como sinal de força, mesmo tendo em conta que precisava de aceitar o trabalho para pagar as contas?”

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Domingo, 21 de Agosto

Assim vamos: uns foram ao Paredes de Coura, outres não. Temos recuperado a alegria da música ao vivo pelos palcos afora, cantando e sorrindo, também de alívio. Há mais alívio quando nos sentimos representades nos eventos que já passaram, como no Bons Sons, e nos que aí vêm, como na temporada da Culturgest anunciada até agora. No grupo da EXISTIMOS+, o alívio vem da união e do riso. Em mim, algo se abriu e mudou, com o desejo colectivo de mudança. A adequação gráfica do múpi à inadequação da invisibilidade ainda é deliciosamente mordaz. Mesmo que tenha sido um acaso, o riso é catártico e cura, abrindo espaço no peito. Para existir mais, há que abrir espaço por dentro e o peito uns aos outres. Talvez seja esse o primeiro passo para regenerar e mudar.

Troquemos-lhes as voltas, que ainda o dia é uma criança.

Pa ram pam pam pam. Pam pam.

Este artigo inclui citações de Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, de Luís Vaz de Camões e José Mário Branco. A autora deseja agradecer a revisão de Rita Dias, Ana Cláudia, Maria João B. Marques, Catarina Valadas e a todes os participantes do grupo Existimos+.

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