Na nova revista Farta, a francesinha é um tema que não se esgota

Com periodicidade semestral, a Farta mostra os pratos mais famosos da cozinha popular portuguesa em edições temáticas que exploram todos os ângulos possíveis. “Eu sou um gajo de revistas”, diz o guru do projecto, Rafael Tonon.

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A capa da revista e um destaque à Francesinha dr

Quantos artigos se podem escrever sobre a francesinha? A busca da resposta já tem forma de revista: o primeiro número da Farta é inteiramente dedicado à icónica e tantas vezes (ou sempre?) polémica iguaria portuense, e em mais de cem páginas confirma-se que sim, a francesinha é um assunto (quase) inesgotável.

O projecto – que não se esgota na revista mas assume-se como uma plataforma com outras ambições, que já explicaremos – partiu de uma ideia de Rafael Tonon, jornalista brasileiro a viver no Porto, especializado em gastronomia e colaborador da Fugas, e do estúdio de design Another Collective, que junta Bruno Soares, Eduardo Rodrigues e Ricardo Barbosa. Conheceram-se antes da pandemia, encontravam-se algumas vezes para falar de comida e da vontade de ter um projecto em conjunto. Depois de algumas ideias que não chegaram a avançar, chegaram à Farta.

“Eu sou um gajo de revistas”, explica Tonon. “E queria fazer uma revista de gastronomia que falasse da comida popular. Tenho muita curiosidade em saber o porquê de certos hábitos alimentares, por que é que as pessoas comem o que comem.” E, vivendo no Porto, e sendo o Another Collective de Matosinhos, a francesinha era uma escolha óbvia para começar.

“A nossa ideia era pensar um prato até à exaustão”, diz Ricardo Barbosa. Ou seja, tentar esgotar um assunto até ao último ingrediente do molho, até ao último argumento contra ou a favor. Ou, nas palavras de Tonon, “descobrir a história que está por trás”, o motivo do fascínio de um prato que “anda nas cabeças, anda nas bocas”, como na música de Chico Buarque. “No final, percebi o valor, talvez mais cultural do que gastronómico, que lhe dão”, afirma o brasileiro cada vez mais portuense.

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A dupla da BePolar criou um prato especialmente para servir a francesinha dr

E, pelos vistos, a curiosidade atravessa fronteiras e chega bem longe. Os autores da Farta já receberam um pedido de uma loja que quer vender a revista em Sapporo, no Japão, e estão abertas portas para várias outras cidades: Lisboa, claro, mas também Barcelona, Paris e Milão. “Existe no mundo um nicho para revistas. É como comprar discos de vinil antigos”, explica Tonon.

O alvo é um público que gosta de revistas também como objectos estéticos e essa foi uma preocupação que levou os Another Collective a pensar cuidadosamente em todos os detalhes, a começar pelo papel. “Houve uma pesquisa muito grande para perceber que formato poderia resultar”, conta Ricardo Barbosa. Optaram por ter lombada, pensando numa colecção em que cada número terá uma cor (na contracapa e na aba, onde aparece o nome), e escolheram um papel com alguma textura, dando uma ideia de algo mais intemporal, que pode ser guardado. E quando trabalharam o título, deram à palavra “farta” a densidade devida, escolhendo letras gordas e negras que neste primeiro número surgem sobre um fundo amarelo.

Outro desafio foi encontrar formas de mostrar francesinhas sem cansar os leitores – afinal, de quantas maneiras diferentes se consegue fotografar um pão recheado e coberto de queijo e molho? De muitas, aparentemente. Um exemplo: se, como diz Ricardo, as francesinhas são geralmente para comer com companhia, o ensaio fotográfico assinado por Pedro Lopes para a Farta mostra uma versão Edward Hopper – leia-se mais solitária – da francesinha, meia comida ou à espera de ser comida, mas sempre num lugar para só para um e onde o elemento humano é uma presença/ausência que parece ter acabado de partir.

E há limites para o que conseguimos aceitar numa francesinha? Claro. A conta de Instagram Cursed Francesinhas ganha aqui uma versão impressa, com imagens indiscutivelmente assustadoras de atentados vários (morangos, really?) contra a sanduíche que, umas páginas antes, um dos melhores chefs portugueses, Vasco Coelho Santos, do Euskalduna, no Porto, tenta recriar numa forma perfeita, que obviamente não revelaremos aqui.

Depois, há tudo o que se pode fazer com o molho da francesinha – Diana Barnabé e Tiago Lessa experimentam, também sem limites (há até um granizado) mas com resultados bem mais interessantes do que as francesinhas amaldiçoadas. Para percebermos realmente o potencial do molho – poderá ser a Sriracha portuguesa?, pergunta-se por aqui, numa referência ao molho de origem tailandesa – temos que descobrir (ou pelo menos tentar) qual o segredo por trás dele.

E, já que se trata de um ícone – e, como escreve Rafael Tonon, recordando a Mona Lisa, “toda a obra-prima tem a sua moldura” – é preciso criar um prato para a servir, tarefa que coube a Hugo Marrafas e Lídia Bispo, da BePolar, em Viana do Castelo. Tudo isto para, por fim, se concluir, muito sensatamente (como faz Pedro Tavares no texto que encerra a Farta): “Não mexais no que está quieto” ou, em inglês, porque a revista é bilingue, “Don’t mess with the francesinha”.

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Dentro da Farta dr

Para além dos já citados, a Farta conta com colaborações de Álvaro Martino, Inês Matos Andrade, João Rodrigues, Min (com uma ilustração), Teresa Castro Viana e Tiago Lessa. Quando Rafael Tonon sublinha que a Farta “não é uma revista, é uma plataforma”, isso tem a ver com a vida que ela ganha através da venda (online, no site) de algumas destas peças, nomeadamente a ilustração, as fotografias do ensaio de Pedro Lopes e os pratos da dupla BePolar.

A revista será semestral, com o próximo número previsto mais para o final do ano, sempre à volta de um único tema, que pode ser o croquete ou o pão-de-ló, a cabidela ou o cozido, ou outro qualquer que inspire os autores, desde que ligado à cozinha popular. Ou seja, tudo o que “anda nas cabeças e anda nas bocas” e tenha por trás uma história que valha a pena ser contada.

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A capa Farta dr

Os autores da Farta estão abertos a parcerias e apoios que não interfiram com o conteúdo editorial, apesar de este primeiro número ser resultado de investimento próprio e apoiar-se nas vendas. Mas o facto de até os japoneses já se mostrarem interessados em saber tudo sobre a francesinha parece um bom augúrio para a recém-nascida revista.

A revista, com 108 páginas (para os mais exigentes nos detalhes técnicos: Impressão em Oikos Extra White 115grs + Malmero 250grs)​, está disponível em www.farta.pt e na Stay Wise, no Porto. O preço de capa é 18 euros.

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