Suzanne Njeri Kuria: Pedimos à ONU que “gentilmente nos dê um lugar à mesa”

Vice-presidente da Rede de Mulheres Africanas Comerciantes e Transformadoras de Peixe veio à Conferência dos Oceanos abrir espaço para as comunidades de pesca de pequena escala, os produtores da aquacultura e as mulheres.

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A queniana Suzanne Njeri Kuria em Lisboa Rui Gaudêncio

Suzanne Njeri Kuria está sentada num dos bancos dispostos ao longo da grande passadeira de madeira que contorna um dos vulcões de água, no Parque das Nações, em Lisboa. À sua frente está uma mesa coberta com uma toalha azul, velas grossas brancas e um colorido de frutas: ananás, manga, laranjas, bananas, maçãs, uvas. A queniana tem uma aquacultura em Nairobi e veio à Conferência dos Oceanos das Nações Unidas (na semana passada) enquanto vice-presidente da Rede de Mulheres Africanas Comerciantes e Transformadoras de Peixe. Mas a sua presença foi notória logo no primeiro dia da conferência, durante uma sessão lateral sobre aquacultura, quando falou já no final, a partir da plateia, sobre a importância do diálogo com os pescadores de pequena escala e produtores de aquacultura, e sobre a necessidade de alimentar as comunidades piscatórias africanas. Conseguimos entrevistá-la no mesmo dia, mas não houve oportunidade para a fotografia. Agora, apanhámos a produtora de peixes numa acção simbólica. Ela convida-nos a sentar e explica-nos o significado daquela mesa cheia de cores, uma metáfora para a diversidade humana.

“Estamos a pedir para termos representação numa mesa que está a falar sobre nós, que está a ter uma conversa sobre nós. Mas não deve ser para nós e sim connosco. Se olharmos para o mundo neste momento, vemos um ‘prato’ vazio”, referindo-se à falta de representação que costuma acontecer em negociações internacionais. “Mas se estiverem vários indivíduos, encontramos cor e beleza. Se estiverem as mulheres, os jovens, os homens, os pescadores de pequena escala juntos, como é que o mundo seria? Como é que as Nações Unidas seriam? É isto que estamos a pedir. Pedimos gentilmente que nos dêem um lugar à mesa”, resume.

A vontade de mudar o mundo vem de longe, desde 1984, quando era uma jovem adulta e observava a grande crise de fome que atravessava a Etiópia. “Quando se olha para África, a terra é tão vasta. Lembro-me de que estava a chover a um dado momento e perguntei-me a mim própria: ‘Porque é que está toda a gente a morrer?’ E pensei: ‘Vou trazer uma solução para a fome'”, relembra.

Nas décadas seguintes trabalhou em vários países africanos na Plan International, uma organização humanitária, onde ajudou crianças e famílias que moram na rua. Apesar de se ter aproximado do cultivo de alimentos, só muito mais tarde é que enveredou pela aquacultura, criando tilápias, peixes-gato e peixes ornamentais para aquários. É também sobre esse universo, que passou a conhecer de perto, de que fala nesta entrevista.

Como começou a sua jornada na aquacultura?
Em 2007. Não tenho experiência na pesca, isto foi um hobby que se tornou uma paixão, que se tornou um negócio, que voltou atrás para ser entre uma paixão e um negócio. Acho que se tornou uma paixão mais do que qualquer outra coisa.

Comecei uma quinta e faço aquacultura em lagoas, tenho lagoas de peixes que construí com revestimento. Algumas pessoas disseram que isso não era possível, era demasiado técnico, era necessário trazer o meu marido. E eu disse “Não, sou a pessoa para fazê-lo.” Isso fez com que me esforçasse a ser ainda melhor.

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Que dificuldades atravessam os profissionais da aquacultura?
É preciso dar força à aquacultura no mar. Ajudá-los a serem mais reconhecidos, a aumentar a produtividade e a melhorar os mercados, haver um maior valor para a entrada de dinheiro. Na aquacultura de água doce é a mesma coisa, temos de aumentar a produtividade para haver mais lucro.

Há muita competição vinda de Ásia, a tilápia, que é mais barata do que o custo de produção do nosso peixe. O nosso custo de produção é muito alto e é por causa do custo da alimentação dos peixes, do custo de todo o equipamento que se é obrigado a importar. Nós éramos auto-sustentáveis em termos de produção de alimento, quando é que a situação se inverteu? Precisamos de trazer de volta esse incentivo para produzirmos localmente matéria-prima, para que o custo da produção agrícola possa diminuir. O custo da electricidade é muito alto, os impostos. Por isso, tem de haver uma forma destas coisas baixarem.

Além disso, se conseguirmos produzir muito, localmente, podemos alimentar as nossas populações locais, e depois olhar para os mercados locais tal como olhamos para os mercados externos.

A sua intervenção na conferência sobre como alimentar as comunidades locais teve bastante impacto.
Se um agricultor passar a maior parte do seu tempo num hospital porque está malnutrido e está sempre doente, irá conseguir cultivar coisas? Não. Mas tenho de começar comigo própria, enquanto agricultora sou a minha primeira cliente. Todos temos de aprender a ver isso. É necessário pensar que qualquer coisa que eu produza tem de ser suficientemente boa para comer e pararmos de dizer que só cultivamos para o mercado externo. Aqui há um desafio, se se olhar para os produtos de exportação, tanto horticulturas como peixes, somos muito exigentes nos padrões. Mas para o consumo local tendemos a ignorar a sua qualidade. Por isso, temos de dizer “eu também tenho valor”, será que também consigo produzir com a mesma qualidade para mim?

Como?
Se o agricultor começar a reconhecer o valor do produto desde o início, isso faz com que ele coloque as questões certas sobre o solo ao agrónomo, o que fará com que obtenha as respostas certas para o seu sistema de produção.

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Depois, temos de olhar para os mercados. Estamos muito enviesados, toda a gente fala de que temos de ter peixes grandes, de 500 gramas, mas isso é para um mercado selecto. O que fazer com a base da pirâmide, com os de baixo, quando é que eles vão poder comer peixe? As taxas mais altas de pobreza e os maiores rácios de malnutrição estão entre as comunidades piscatórias. Não conseguem pagar o peixe para comer. Temos de tornar o peixe mais barato, eles têm de ser as primeiras pessoas. Será que a nutrição pode começar aí?

Qual é o papel da comunidade internacional nesse processo?
A comunidade internacional traz conhecimento e habilitações, inovação e tecnologia, finanças. Mas para mim o divisor de águas deverá ser neste tipo de conversações, como esta conferência. Coloquem os produtores de pequena escala sentados nos painéis, para poderem ouvi-los. Não me dêem soluções, que alguém pensa ser o melhor para mim. Será que podemos fazer isto juntos? Tem de haver inclusão. Todos têm um papel nisto e o mais importante é a base da pirâmide.

Isto começa a acontecer. Mas muitas vezes há tanta informação técnica que acho que nos traumatiza, afastamo-nos e dizemos “isso não é para mim”. Se pudermos destrinçar este conhecimento e depois aproveitar o conhecimento indígena, e juntá-lo com a investigação, as habilitações e a inovação, acho que vamos ter resultados muito bons.

Quais são os desafios para as mulheres, em África?
Há muitos desafios, é preciso recordar que temos 100 papéis diferentes, ao contrário dos homens. O papel do homem é comer, dormir, acordar, trabalhar e voltar para casa onde está tudo feito. E a mulher? Ela é uma dona de casa, uma cuidadora, uma agricultora, uma profissional. É preciso não nos esquecermos de que temos uma cultura, uma tradição, que tem um grande impacto nisto. Nunca estamos à mesa, porque é o homem que fala, é o homem da casa. Tudo o que estamos a pedir é ter oportunidades iguais para nos sentarmos à mesa.

Um barco, por exemplo, ou um tractor para a agricultura, estão todos projectados para os homens. Quando se vai às praias de desembarque, não há espaços para mulheres, há questões sanitárias. Vamos trabalhar com os nossos filhos, não há creches para as crianças, não há uma zona para eles brincarem. E ainda assim, acho que a nossa produtividade é maior, é esperado de nós que façamos tanto quanto os homens. Temos de mudar isso.

O que espera desta conferência?
Que a partir de agora vamos poder estar sempre à mesa das conversações. Sem nós o prato não tem sabor. Queremos dar um prato colorido, agradável, prático, onde cada um possa trazer algo para a mesa. Por isso, acreditem em nós, porque nós acreditamos em nós mesmos e é por isso que fazemos aquilo que fazemos. E até poderíamos fazer melhor, se se lembrarem que não é suposto ficarmos para segundo plano, mas sim na frente.

Está a falar das mulheres?
Estou a falar da pesca de pequena escala, mesmo do pescador, a sua voz tem de ser ouvida. Estou a falar das mulheres, dos jovens, eles têm de se sentar à mesa.

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