Confissões irrelevantes

Falo com a minha avó que morreu como se ela fosse Deus. Não falo com Deus. Ainda não descobri o prazer de cozinhar. Em criança, achava muito estranho que os amigos dos meus pais se chamassem todos tios.

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Tyler Nix /Unsplash

Fiquei desiludida quando descobri que não se dizia “proglema” nem “banho de impressão”. Ouvi um palavrão pela primeira vez por causa do Simão Sabrosa ter trocado de clube. Não tenho cor preferida, mas o meu barulho preferido é o som do Yoshi a saltar no jogo da Nintendo 64. Em criança, achava que a pomada para as melgas era para ser aplicada directamente nas melgas.

Chego atrasada e tenho a necessidade de preencher silêncios com frases descabidas. Quero ser céptica e racional, mas pergunto ao homem do talho o ascendente astrológico e insisto para que ele ligue à mãe a saber a hora a que nasceu. Quero ser gentil, mas não disfarço a cara de caso quando descubro que é Escorpião. Julgo que sou intelectual, mas gosto de pipocas no cinema e vibrei com o Mamma Mia. Choro a fazer depilação a cera e grito como se estivesse a parir. Não gritei muito quando pari. Não guardei os umbigos das minhas filhas, achei mais nojento do que querido. Ouço Caetano Veloso todos os dias. Caí no esquema de corrupção de um tio, mudei de clube de futebol em troca de uma bicicleta e o meu pai ficou sem falar comigo. Senti-me tão odiada como o Simão Sabrosa.

Ainda não consegui perceber os NFT’s apesar de já mos terem explicado muitas vezes. Estou no processo de assumir que talvez eu nunca chegue lá, como a minha avó com a Box ou os meus pais com as stories do Instagram.

Mostro vídeos das minhas filhas a desconhecidos nas filas de bares. Não sei comunicar por email, não gosto quando esperam que os emails me encontrem bem. Não percebo porque não se usa vírgula antes do vocativo nos mails.

Nunca consigo sair de casa de uma vez, a média são três regressos para buscar coisas esquecidas. Falo com a minha avó que morreu como se ela fosse Deus. Não falo com Deus. Ainda não descobri o prazer de cozinhar. Em criança, achava muito estranho que os amigos dos meus pais se chamassem todos tios.

Quando ouço uma buzina acho sempre que é para mim, que fiz alguma coisa mal, mesmo que esteja sentada numa esplanada. Nunca consigo tomar a amoxicilina até ao fim. Sou uma assassina de plantas.

Aos seis anos desisti do ballet e não contei aos meus pais. Quando a professora de ballet ia buscar os alunos à sala, eu atirava um lápis para o chão e baixava-me para apanhar, para ela não me ver.

Faço entrevistas imaginárias a mim própria. Ainda demoro muito tempo a ver as horas nos relógios de ponteiros. Sempre que digo a alguém que não gosto de um nome, calha ser o nome do pai ou da mãe da pessoa. A primeira vez que pus um tampão desmaiei. Já perguntei em dates, para quebrar o gelo: “Qual será a esperança média de vida dos pombos?” e: “Já viste alguém morto?”

Sinto-me abandonada e tenho vontade de chorar quando não me respondem nos grupos de WhatsApp. Tenho a mania de que falo bem e sou irritante a ponto de corrigir quando dizem “há dez anos atrás” e “tenho um amigo meu”, mas digo “à última da hora”. Adorava o sabor do Ben-u-ron e fiquei triste com a passagem dos xaropes para os comprimidos.

Sabia distinguir as marcas dos cigarros pelo cheiro: Marlboro, mãe, SG, pai, LM, padrasto. Tenho pensamentos egoístas e maquiavélicos: por exemplo, se estiver doente e não puder ir à rua, prefiro que esteja a chover para que mais ninguém possa usufruir do prazer do sol. Tenho medo de envelhecer e quando me chamam senhora e reparo que não é a brincar, quero morrer. O meu primeiro namorado tinha ciúmes do Fernando Pessoa. A praia vazia traz-me felicidade, mas o cinema vazio, angústia.

Quero ser ambientalista mas gosto de Nutella, ainda compro na Zara e tomo “banhos de impressão” para esquecer os “proglemas”.

Sento-me com o ímpeto de escrever uma crónica pertinente sobre a actualidade política e acabo a escrever sobre frivolidades.

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