Índia: há outro gigante asiático que evita condenar a Rússia pela invasão da Ucrânia

À semelhança da China, Nova Deli não critica Moscovo e apela ao diálogo. Índia tem laços económicos fortes com o Ocidente, mas a Rússia é o seu principal fornecedor de armamento. E Modi conta com o Kremlin como contrapeso à influência chinesa na região euroasiática.

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Narendra Modi (primeiro-ministro indiano) e Vladimir Putin (Presidente russo) sempre tiveram uma boa relação institucional Reuters/POOL

Desconsideradas pela maioria dos países, por raramente terem grandes efeitos práticos, as votações na Assembleia Geral das Nações Unidas não costumam gerar particular interesse mediático. A votação da resolução de condenação da invasão da Ucrânia pelas tropas da Federação Russa, no dia 2 de Março, no plenário da organização mundial, em Nova Iorque, teve, no entanto, um propósito: mostrar ao mundo quem apoia – ou quem tolera – a guerra que Vladimir Putin impôs ao seu vizinho.

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Desconsideradas pela maioria dos países, por raramente terem grandes efeitos práticos, as votações na Assembleia Geral das Nações Unidas não costumam gerar particular interesse mediático. A votação da resolução de condenação da invasão da Ucrânia pelas tropas da Federação Russa, no dia 2 de Março, no plenário da organização mundial, em Nova Iorque, teve, no entanto, um propósito: mostrar ao mundo quem apoia – ou quem tolera – a guerra que Vladimir Putin impôs ao seu vizinho.

A lista de apoiantes assumidos de Moscovo já se perspectivava curta, previsível e pouco influente – a saber, Bielorrússia, Síria, Coreia do Norte e Eritreia – e entre as 35 abstenções, que incluem antigas repúblicas soviéticas e aliados africanos e latino-americanos dos russos, foi a República Popular da China, com quem a Rússia anunciou, duas semanas antes da invasão, um reforço da sua parceria bilateral, “sem limites” e sem “áreas proibidas” de cooperação, quem gerou mais interesse.

Mas na lista dos países que recusam criticar o Kremlin pela invasão de um país soberano consta outro gigante asiático, que tem passado relativamente despercebido, apesar de também se ter abstido, dias antes, e sobre o mesmo tema, no Conselho de Segurança na ONU: a Índia.

O país governado por Narendra Modi tem-se mantido longe dos holofotes. Apela ao diálogo ao mais alto nível e promete contribuir para a ajuda humanitária à Ucrânia. Evita, porém, e o mais que pode colocar-se numa posição que possa pôr em causa os seus interesses securitários, económicos e geopolíticos, e que deteriore as boas relações que tem com a Rússia, com os Estados Unidos, com a União Europeia ou com o Reino Unido.

O primeiro-ministro indiano tem estado em constante contacto com diferentes líderes mundiais – incluindo com o Presidente russo e com o Presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, a quem pede um “diálogo directo” –, mas o conteúdo dos comunicados que depois são tornados públicos é vago e raramente refere directamente a Rússia, Putin ou a guerra.

“O principal foco [da Índia] é navegar entre a resposta dura do Ocidente aos avanços militares russos e o não abandono da Rússia, um aliado histórico chave”, clarifica Jagannath Panda, director do Centro de Estocolmo para os Assuntos da Ásia do Sul e do Indo-Pacífico.

“A Índia tem uma ‘parceria estratégica especial e privilegiada’ com a Rússia, que cobre entendimentos políticos, uma forte cooperação na Defesa, uma parceria espacial e laços energéticos. As relações próximas entre as duas nações vêm do período da Guerra Fria – a União Soviética fornecia armas à Índia contra o Paquistão”, explica o investigador, num artigo publicado na revista The Diplomat.

“Nos últimos anos, a Rússia tem vindo a fornecer submarinos, tanques, caças e até tem prestado assistência no desenvolvimento do programa nuclear da Índia”, acrescenta, sublinhando que a Rússia é o maior fornecedor de armamento de Nova Deli, sendo que 49% do total de armas importadas pelo Exército indiano entre 2016 e 2020 são russas – incluindo o sistema antimísseis S-400 Triunf.

Em matéria comercial, não há, porém, comparação possível entre os cerca de 9 mil milhões de dólares anuais gerados em trocas bilaterais entre Rússia e Índia e os 100 mil milhões gerados em trocas entre os Estados Unidos e a Índia – ou os 63 mil milhões de euros entre a UE, como um todo, e a Índia.

Diferentes da China

Para muitas democracias ocidentais, esta postura de aparente neutralidade da Índia é, em si, problemática, e até incompreensível, tendo em conta que vem de um país que se descreve e se promove variadíssimas vezes como “a maior democracia do mundo”.

Nesse sentido, tal como em relação à China – e também em virtude da união que se tem visto no Ocidente, em conjunto com os seus aliados e com outros blocos regionais, na hora de condenar Putin – há quem veja nesta posição de Nova Deli um “apoio tácito” a Moscovo.

Mas se as críticas chinesas à expansão da NATO são suficientes para alguns analistas e dirigentes políticos argumentarem contra Pequim, a ausência de apelos indianos a pedir respeito ou compreensão para as preocupações russas, ou simplesmente a tomar nota delas, torna difícil repetir a mesma acusação.

“Sim, a Índia está a abster-se quando a maior parte do mundo está a votar contra os russos, mas, no nosso pensamento, a abstenção não significa decididamente um apoio [à invasão]”, garante Syed Akbaruddin, ex-representante permanente do Estado indiano nas Nações Unidas.

Enumerando “quatro ou cinco” momentos, nas últimas semanas, em que a Índia não tomou o partido da Rússia, incluindo quando “lamentou a deflagração das hostilidades” na Ucrânia, o diplomata explica, citado pelo The Guardian, que “sem mencionar o nome da Rússia, é essa a nossa forma de condenar as acções daqueles que são responsáveis pela violência”.

Ao mesmo tempo que pretende assegurar o melhor dos dois mundos – cooperação militar com Moscovo; cooperação económica com Bruxelas, Londres e Washington – Nova Deli também precisa de manter estáveis suas relações diplomáticas com todas as partes, para poder responder da melhor forma àquilo sente como a ameaça mais imediata e próxima à sua segurança.

“[A Índia] precisa de ambos os lados para conter a crescente beligerância na sua própria vizinhança”, corrobora Jagannath Panda.

O armamento russo, concretamente, é visto pelo Governo indiano com fundamental para manter o Paquistão, eterno inimigo, na defensiva; e para mostrar à China, com quem disputa vastas áreas de território ao longo da fronteira dos Himalaias, que tem argumentos para responder à cada vez maior militarização da região.

O desafio euro-asiático

O braço-de-ferro entre a Índia e a China tem, na verdade, um alcance e um significado muito vais vasto do que a discussão sobre os despojos da descolonização britânica e da guerra sino-indiana de 1962.

A passagem do megaprojecto chinês de infra-estruturas da Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative, segundo a designação oficial) pela sua vizinhança e a convergência entre Xi Jinping e Vladimir Putin, fazem Narendra Modi recear que a “ordem euro-asiática” e a “redistribuição de poder” que os dois líderes revisionistas dizem ambicionar, retire à Índia capacidade de influenciar e de defender os seus interesses a nível regional.

Sendo a China a superpotência em ascensão nessa relação desigual com os russos e a ameaça mais premente à Índia, Nova Deli quer manter as boas relações com Moscovo para não perder o comboio de qualquer transformação geopolítica no Indo-Pacífico e para, em conjunto com a Rússia, ser contrapeso à expansão militar e económica chinesa.

“A visita de Putin aos Jogos Olímpicos de Pequim para se encontrar com Xi Jinping deixou a Índia desconfiada da relação sino-russa”, enfatiza Vivek Mishra, do think tank indiano Observer Research Foundation, em declarações à Al-Jazeera.

“Mesmo que a China se pronuncie ainda mais do que tem feito sobre o conflito entre a Ucrânia e a Rússia, a Índia vai continuar a manter o seu posicionamento neutral”, perspectiva o investigador. “A China é a ameaça iminente à Índia; por isso, a Índia não quer desagradar à Rússia de uma forma que comprometa os seus próprios interesses nacionais”.