“Será que os oligarcas russos sofrem sem cartões de crédito?”

Do lado de lá desta cortina que não se vê, os russos assistem impotentes à perda das suas vidas tal como as conheciam. Não estão a fugir das balas, nem tiveram de abandonar as suas casas com um saco na mão, como tantos ucranianos, mas vêem as suas mãos esvaziar-se.

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De acordo com o grupo independente russo de direitos humanos OVD-Info, centenas de pessoas que se manifestaram contra a guerra na Ucrânia foram detidas nas principais cidades russas EPA/ANATOLY MALTSEV

“Trabalho muito, nunca fui rico, mas conseguia viver bem. Agora, não tenho dinheiro para nada. Tenho velhos pais para sustentar e sonho em ser pai. E tenho medo, estou destruído.” O desabafo poderia ser de alguém na Ucrânia, mas é de um russo a residir em Moscovo. Chega-me através do WhatsApp​, onde o meu amigo me pede para não o identificar.

Todos nos odeiam agora”, lamenta-se, sem saber o que fazer, mas não deixa de me dizer: “Eu sou russo e quero paz e independência para a Ucrânia. Sou russo e estou assustado.”

O outro lado da moeda que, tantas vezes, nos esquecemos de virar. A solidariedade para com a Ucrânia e a condenação das acções russas emocionam: há muito tempo que não se via tanta gente unida por uma causa. Mas, ao mesmo tempo, qual onda viral numa qualquer rede social, depressa se transforma num tsunami que leva tudo à frente de forma indiscriminada.

Começou-se por ter como alvo o Estado e os oligarcas que, diz-se, o apoiam, para logo de seguida se começar a atingir pessoas: músicos (até Tchaikovski, falecido há quase 130 anos, foi suspenso de um programa de um concerto na Croácia)​, atletas, jornalistas. Se têm no passaporte a nacionalidade russa, tornaram-se párias — não interessa se apoiam o Governo de Putin, se defendem a guerra, ou se, apesar dos dias negros que se adivinham e como me relata o meu amigo, continuam a enviar dinheiro para os familiares e amigos na Ucrânia ou a manifestarem-se nas ruas contra a política sanguinária do seu Presidente, acabando detidos.

Do lado de lá desta cortina que não se vê, os russos assistem impotentes à perda das suas vidas tal como as conheciam. Não estão a fugir das balas, nem tiveram de abandonar as suas casas com um saco na mão, como tantos ucranianos, mas vêem as suas mãos esvaziar-se. “Eu trabalho muito, nunca fui rico, mas conseguia viver bem. Agora não tenho dinheiro para nada”, releio.

Já as perspectivas de trabalho escasseiam, com as empresas que operam na Rússia a baterem em retirada: de grandes retalhistas a multinacionais ligadas aos mais variados ramos da indústria, serviços, tecnologia... E, assim, muitos ficam, de um dia para o outro, sem o emprego que tinham como garantido. É o caso do meu interlocutor, que não sabe quando voltará a ter trabalho. “As sanções não me permitem [trabalhar]”, desabafa.

Há um português, porém, que se mantém de pedra e cal. “Consideramos que não devemos misturar regime e pessoas”, disse Carlos Tavares, CEO da Stellantis, numa entrevista à CNN Business. “O regime é uma coisa, os cidadãos são outra”, sublinhou, considerando que interromper o trabalho na fábrica de Kaluga, a cerca de 150 quilómetros de Moscovo, de onde saem anualmente mais de dez mil furgões comerciais com os emblemas Citroën, Opel e Peugeot, prejudicaria a subsistência dos trabalhadores locais, não a liderança russa. No entanto, é expectável que a linha de montagem seja forçada a parar, quando peças e componentes começarem a escassear. Paralelamente, o aglomerado anunciou destinar um milhão de euros para financiar o trabalho de assistência aos refugiados ucranianos após a invasão russa.

Na Rússia, muitos opositores, entre os quais vários jornalistas, saíram do país com medo de serem apanhados e detidos pelo regime. “Mas o inferno também existe do outro lado”, comenta o meu amigo, lembrando que, depois de a Mastercard e de a Visa terem suspendido os seus serviços, “estas pessoas estão em países estrangeiros sem dinheiro nenhum”. E deixa a dúvida no ar: “Será que os oligarcas russos sofrem sem cartões de crédito?”


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