A barbaridade de guerra não justifica perseguições à Cultura

Na Croácia, Tchaikovski foi retirado do programa de um concerto pela simples razão de ser russo. Uma manipulação intolerável que se vem juntar à manipulação de Putin e à barbaridade da guerra que desencadeou e cujo fim todo o Mundo deseja.


[…] a mentira hoje no mundo é mais poderosa que a verdade.
Padre António Vieira (1608-1697)

A invasão da Ucrânia pela Rússia, na madrugada de 24 de Fevereiro p.p., bem ao estilo perverso dos que assaltam pela calada, jogando malevolamente com o imprevisto, pôs bem em evidência o comportamento natural de um ex-agente do KGB, instruído na prática do massacre e da persuasão forçada, a que se alia a obsessão pela “Grande e Santa Rússia”. Uma invasão que aconteceu após demorada encenação russa, em encontros e desencontros com europeus e norte-americanos, no intuito, que se evidenciou vão, de evitar um confronto bélico. Como esquecer a imagem daquela sinistra e imensa mesa, extremando, em dezenas de metros, o encontro de Putin, inchado e sobranceiro, com Macron, franzino e semi-enterrado na sua cadeira?

Putin, o ex-KGB que não confundimos com o povo russo, imagem de um ditador, fiel à herança de um poder imperialista e “divino”, Ordem inquestionável e assente no fervoroso culto da História em absurdo, sob o traje de mentiras repetidas que se tornam “verdades” massacrantes, e da crueldade, evidente no desprezo pela vida, na perseguição a quem, não abdicando da sua liberdade natural de pensar, se opõe ao dogmatismo das “verdades” forjadas e na imposição da obediência, geradora de medo, e método eficaz para domar e fidelizar. Decretar a obediência constitui, na verdade, uma das estratégias cruciais para amansar críticos e conduzir facilmente os que se deixam seduzir por discursos enganosos. Um aprisionamento mental que Inácio de Loyola (1491-1556), mentor da Ordem dos Jesuítas, soube bem precisar ao definir, em pormenor e numa linguagem chocante, a noção de “Obediência”: “Persuada-se cada um que os que vivem em obediência devem deixar-se guiar e dirigir pela divina Providência, por meio do Superior como se fossem um cadáver que se deixa levar seja para onde for, e tratar à vontade; […]. Assim o obediente deve fazer com alegria tudo aquilo em que o Superior o quiser ocupar para ajudar todo o corpo da Ordem.” (Cf. Constituições da Companhia de Jesus, Lisboa, 1975. P. 187). Em estreita cumplicidade de “divinos”, ontem como hoje, a preocupação em manter a Ordem e a Disciplina estabelecidas que atrofiam e anulam o indivíduo, salvando-o, segundo os mentores. Putin também quer salvar a Ucrânia dela mesma…

Presenciei essa nova religião, esse espírito do “Homem novo”, ou seja, aquele que é formatado no culto pelo chefe divinizado, “pai” ou “paizinho” protector (assim era no tempo dos Czares e continua), quando estive, em 1975, e durante um mês, na Roménia, cidade de Brasov, sendo bolseira de Língua Romena, no último ano do meu curso de Filologia Românica. Passeava, uma tarde, num jardim quando um grupo de “milícias do povo”, todos rapazes, primando pela gritaria, o infestaram. Milícias que continuam a existir e cujo poder e frieza no contacto humano pudemos recentemente observar na China, na sua vigilância férrea aos habitantes dos bairros isolados, devido à Covid. Regressando ao jardim de Brasov e às milícias romenas, vi como algumas pessoas lhes deram rápida e subservientemente passagem, baixando os olhos, num gesto flagrante de medo. Vi também como forçaram um casal de velhos a levantar-se do banco onde se encontrava sentado, sem qualquer justificação que não fosse a crueldade de um gesto intimidante, acompanhado de sonoras e alarves gargalhadas. Terminada a encenação de poder à maneira de Ceausescu, o grupo continuou em alarido o seu caminho, olhando para mim, petrificada perante a cena, com um ar de desafio e de agressividade que, confesso, também me intimidou.

No refeitório da universidade onde tomávamos as nossas refeições, desconhecendo que não nos podíamos juntar aos estudantes romenos, fui, no primeiro dia, para a fila onde estes esperavam a sua vez para o almoço. Reparei, então, numa súbita troca de olhares entre os vários funcionários da cantina, aparecendo logo de seguida um segurança que apontou autoritariamente para a fila onde estavam os estudantes estrangeiros. Em suma: havia duas filas em paralelo, uma para estrangeiros, outra para nacionais, sendo diferentes as refeições servidas a uns e a outros, e escusado será dizer que as nossas eram muitíssimo melhores e até com várias opções de boas sobremesas, estando proibido também, soube-o depois, o encontro com os estudantes romenos. Guardo ainda o olhar de revolta do estudante que se encontrava à minha frente, na fila que eu própria escolhera porque, na verdade, era sobretudo com os estudantes romenos que eu desejava conversar, já que com os colegas estrangeiros me encontraria todos os dias nas aulas e nas restantes actividades culturais. Quando impressionada pelo olhar desse estudante tentei ir falar-lhe, fui pura e simplesmente barrada e forçada a voltar para a fila dos privilegiados. Umas horas depois, a professora que leccionava “Cultura Popular” veio ter comigo, aconselhando-me a cumprir as regras instituídas no funcionamento do Curso. No entanto, ninguém nos havia alertado previamente para a proibição de falar com estudantes romenos.

Soubemos recentemente, via Putin, que o exército russo, num “acto solidário”, justificação absurda que já fora invocada na Crimeira, em 2014, deseja apenas “libertar o povo Ucraniano da opressão neo-nazi e substituir o seu governo por um mais adequado”, já que este é composto por “fascistas e drogados”. Com um governo democraticamente eleito, a Ucrânia não precisa de qualquer libertação, nem de intrusos, só tem de ser ela própria a conduzir a sua História e não Putin que usa a calúnia como argumento e se mascara de “‘paizinho’ salvador”, acreditando esconder aos olhos do mundo a sua avidez de espaço, comportamento que se ajusta a uma histórica tradição imperialista à qual se mantém fiel. Recuperar o espaço perdido, em 1991, recuperar influências, anular a fragmentação da “Rússia histórica”, “a maior catástrofe geo-estratégica” que aconteceu à Rússia, nas palavras de Putin, é o seu veemente desígnio político.

O seu poder totalitário, sob a capa miserabilista e amordaçante de proteger quem por si só não é capaz de fazê-lo, segundo pensa, está bem patente no discurso paternalista que proferiu, no Kremlin, perante a DUMA, e outras entidades, a 18 de Março de 2014, dizendo e desdizendo-se simultaneamente, numa referência já à Ucrânia: “[…] não somos simplesmente vizinhos próximos mas, como já disse tantas vezes antes, somos um povo. Kiev é a mãe das cidades russas. A Rússia antiga é a nossa origem comum e uma não vive sem a outra. […]. A Rússia defenderá sempre os seus interesses usando meios políticos, diplomáticos e legais. Mas deve estar acima de tudo e no próprio interesse da Ucrânia assegurar que os direitos e interesses do seu povo sejam totalmente protegidos. […] Acima de tudo, queremos paz e harmonia na governação da Ucrânia, e estamos prontos para trabalhar juntamente com outros países para fazer tudo o que for possível e facilitar que assim aconteça. Mas como disse, só o próprio povo da Ucrânia pode arrumar a própria casa.” Putin, à semelhança de Estaline ou de Hitler, só se rodeia de bajuladores e de quem lhe diz o que gosta de ouvir. Aqueles que minimamente discordem das suas decisões, ou se tornem opositores, desaparecem, mais tarde ou mais cedo.

Volodymyr Zelenski, “o comediante” “neo-nazi” que lamentavelmente “os ucranianos escolheram para conduzir o governo do seu país”, nas palavras de Bolsonaro e de Putin, ou que por ser judeu sofreu enxovalhos da parte de acólitos daquele último, sobressaiu, no dia em que, desmentindo notícias falsas, a propósito da sua saída da Ucrânia, depois da invasão, afirmou, num breve, sincero e comovente discurso, continuar em Kiev junto dos ucranianos para lutar pela liberdade do país. Aliás, quando os EUA e a Turquia lhe ofereceram recentemente protecção para sair de Ucrânia, o que qualquer outro político em situação afim aceitaria, a sua resposta foi conhecida: “Necessito de munições, não de uma viagem” (“I need ammunition, not a ride”, in Washington Post)

Inquieta, em Portugal, a insensibilidade do PCP e do BE face à tragédia que ocorre na Ucrânia, com um governo democraticamente eleito, bem como em relação às manifestações selvaticamente reprimidas na Rússia, agora em “lei marcial” e com 15 anos oferecidos de prisão para qualquer jornalista que ouse referir dados sobre a guerra. O seu comportamento, francamente apoiante da investida de Putin ou dúbio, não abona a favor da sua responsabilidade política nem da defesa que publicamente fazem da liberdade de pensar, desrespeitando assim a grande maioria dos eleitores que neles gostariam de continuar a confiar. Mas se inquieta o comportamento destes dois partidos portugueses, essenciais para a continuidade da pluralidade democrática, não é menos inquietante a notícia que nos veio da Croácia, a propósito de Tchaikovski ter sido retirado do programa de um concerto pela simples razão de ser russo. Por este andar, começarão os autos-de-fé com livros de autores russos. A Cultura não pode ser usada como factor de pressão. Uma manipulação intolerável que se vem juntar à manipulação de Putin e à barbaridade da guerra que desencadeou e cujo fim todo o Mundo deseja.

Maria do Carmo Vieira

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