A legalização da praça de jorna

O incumprimento generalizado das leis do trabalho por parte das instituições culturais portuguesas está agora oficializado na jurisprudência. O que torna a luta mais difícil, mas nunca menos aliciante!

Depois de a Autoridade para as Condições do Trabalho detectar 37 falsos recibos verdes na Casa da Música, em 2020, a pressão pública levou à contratação de 20 trabalhadores com contratos efectivos. Uma enorme vitória. Mas sobraram 15: os assistentes de sala. Em Portugal, são quase nenhumas as salas de espectáculos que respeitam esta profissão. Há quem pense tratar-se de uma ocupação de tempos livres para filhos e sobrinhos da classe alta, uma espécie de voluntariado para ricos. Mas são os outros que garantem a qualidade do trabalho — os que vivem daquele emprego e somam anos de experiência. A responsabilidade não é pouca, quando se trata de garantir a ordem e a segurança de muitas centenas de pessoas dentro de uma caixa com poucas saídas.

Não é só a Casa da Música. São os teatros nacionais e municipais, os coliseus, a Gulbenkian, o Centro Cultural de Belém e outros que tais. Na Casa da Música fizemos as contas: todos os anos, são necessárias mais de 20 mil horas de trabalho por parte de assistentes de sala, que correspondem a 12 horários a tempo inteiro (ou às respectivas combinações de horários a tempo inteiro e parcial). 20 mil horas de trabalho previsível, a maior parte programada com um ano de antecedência.

A administração da Casa da Música ofereceu contratos a estes trabalhadores, ainda em 2020. Eram propostas escandalosas de 159 euros brutos por mês para dez horas semanais – uma fracção do salário mínimo em troca de enorme disponibilidade de horário, em todos os dias da semana, com minutas que não especificavam períodos de trabalho nem princípios para a fixação de escalas de serviço. Quem assinasse tais contratos ficava à mercê dos desmandos das chefias, impossibilitado de conciliar o trabalho de apenas dez horas com qualquer outro rendimento estável.

O caminho foi o tribunal, onde o Ministério Público defendeu a existência de contratos de trabalho. E é aqui que a saga se torna uma tragicomédia de enredo duvidoso. Como sabemos, o Código do Trabalho define uma série de condições para a presunção do contrato de trabalho, bastando que se cumpram duas. Os assistentes de sala cumpriam quatro, e a ré podia rebater a presunção demonstrando que as condições, apesar de provadas, eram incompatíveis com a subordinação jurídica. Mas como não o eram, o Tribunal do Trabalho do Porto e o Tribunal da Relação encontraram soluções mais abstrusas para não reconhecerem o vínculo laboral. Veja-se alguns excertos das sentenças e dos acórdãos que estes tribunais produziram entre Abril e Novembro de 2021:

“...o facto provado de a actividade prestada por X. ocorrer num local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado pouco poderá relevar, desde logo, porque não seria expectável ou mesmo exequível que aquele pudesse prestar a sua actividade em qualquer outro local por si escolhido”; “…não seria minimamente expectável, nem faria sequer qualquer sentido, que os assistentes de sala usassem os seus próprios rádios, auriculares, leitores de validação de bilhetes e contadores de pessoas. Aliás, se tal pudesse suceder, poder-se-ia mesmo colocar em causa o sucesso dos espectáculos e/ou eventos”; “…a observância de horas de início e termo da prestação terá de ser a do espectáculo ou evento (…). Como é óbvio, se o evento ou espectáculo decorre das 21h às 23h, o assistente de sala não poderá exercer as suas funções quando muito bem entender”.

Perante isto, a conclusão óbvia seria apenas uma: a Casa da Música precisa mesmo de assistentes de sala com contrato de trabalho, pois precisa que eles realizem o trabalho naquele local, naquele horário e com aqueles instrumentos. Pelo contrário, os tribunais vêem estes factos como meras fatalidades que se impõem ao empregador. É como dizer que a abertura de uma loja das 10h às 19h é culpa da sociedade de consumo, pelo que o funcionário de balcão pode ser obrigado a atender clientes neste mesmo horário e nas instalações do patrão e, contudo, permanecer a recibo verde. Faz sentido? Claro que não.

O tribunal declara ainda: “poder-se-á dizer que recebiam um montante certo por hora de trabalho, mas um montante variável determinado em função de número de horas de actividade”. Todos sabemos que o recebimento de um salário variável pode acontecer em qualquer relação de trabalho, com contrato efectivo. Contudo, para os juízes destes tribunais apenas serviria a existência de um salário mensal fixo. Curiosamente, o Supremo Tribunal de Justiça não foi da mesma opinião num acórdão de 2014: “Não afasta a presunção (…) o facto de o pagamento do valor do serviço prestado pelo trabalhador ser calculado com base no número de horas prestadas.”

As sentenças dizem ainda que “toda a organização que necessariamente exige a actividade da Ré se mostra imprescindível, pelo que não poderá, cremos, revelar-se de forma determinante para a qualificação do contrato”. É como anunciar que já não é possível usar a presunção de contrato de trabalho para corrigir qualquer situação de falso recibo verde em Portugal. Os argumentos usados poderiam ser aplicados à maior parte das relações de trabalho que conhecemos, tornando o recibo verde a norma para funções em que o local, o horário, os instrumentos de trabalho, a retribuição periódica e a sujeição a uma hierarquia são inevitáveis!

A melhor forma de disfarçar a subordinação jurídica, contudo, está validada e poderá servir a muitos arrivistas liberais. Eis a receita: dêem espaço ao trabalhador “independente” para ele próprio dizer os dias em que prefere estar ao serviço. Como? Mantenham uma praça com o triplo dos funcionários de que precisam para determinada função, e não dêem mais de dez a 20 horas por semana a cada um. Sem horários a tempo inteiro, todos precisarão de um emprego complementar para obter um rendimento digno. E, assim, acedem à possibilidade de ir negociando os seus dias de trabalho a cada mês. Bem vistas as coisas, qualquer contrato de trabalho permite isso mesmo, ao estabelecer os dias de trabalho e de descanso, negociados entre as partes no momento da assinatura. Mais: diz a lei que a organização dos turnos deve respeitar as preferências do trabalhador, sempre que possível. Mas estes são argumentos que não contam no tribunal da precariedade.

Apesar do voto vencido de um dos juízes desembargadores — “A ré não alegou, nem muito menos provou, qualquer facto real e concreto que pudesse, juridicamente, sustentar a ilisão da presunção de laboralidade” —, a Fundação Casa da Música foi absolvida, tal como a Fundação de Serralves nos processos relativos aos educadores. O incumprimento generalizado das leis do trabalho por parte das instituições culturais portuguesas está agora oficializado na jurisprudência. O que torna a luta mais difícil, mas nunca menos aliciante!

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