O ano da advocacia

Torna-se essencial e urgente imprimir um novo rumo à Ordem dos Advogados, começando logo na imposição da advocacia na discussão legislativa.

Ainda sob o signo da pandemia de SARS–CoV-2, o mundo começa, lentamente, é certo, porque essa é a natureza das coisas, a despertar para o renascer das relações pessoais, profissionais e económicas, sem o espartilho das enormes restrições que todos vivemos.

Em todos os sectores de actividade, nas nossas casas, ruas, entre amigos e família, nas televisões, rádios e jornais, assistimos a intensas discussões sobre o presente e o futuro, antecipando a discussão de problemas e encontrando soluções. Ao fim e ao cabo, aproveitou-se o período de pausa (ou de lenta actividade, se preferirmos) para ponderar, reflectir e programar a acção.

Sucede, porém, que essa realidade, lamentavelmente, não é extensível à advocacia e, sobretudo, ao papel que a Ordem dos Advogados Portugueses pode e deve ter na intransigente defesa do papel do advogado na sociedade, no Estado de Direito.

E não é extensível por um motivo que é simples na enunciação e complexo, muito complexo, na compreensão: dos órgãos centrais da Ordem dos Advogados, dos órgãos de competência nacional, digamos assim, não saiu uma ideia que permita alcançar qual o futuro que a Ordem propõe para a advocacia portuguesa.

Pelo que, perdoem-me as palavras, chegámos ao momento que os advogados veem “o mundo a avançar” rumo a um novo futuro, um futuro incerto, mas discutido, em todas as áreas, vendo “o seu mundo” ficar para trás, sem que lhes sejam apresentadas soluções para as prementes questões que o exercício da sua profissão levantam.

A crise que vivemos na advocacia, que, em determinados aspectos, pode relacionar-se com a denominada crise da justiça, sendo umas vezes causa, outras consequência, tem evidências claras, sobretudo nestas ttrês vertentes, que merecem a nossa profunda reflexão: (i) aos advogados é negado um sistema previdencial e assistencialista justo e igual ao de todos os portugueses, tornando-os desprotegidos na saúde e na doença, abandonados na maternidade e parentalidade e entregues à sua sorte na reforma; (ii) o acesso ao direito e o apoio judiciário vivem uma situação caótica, sem actualização de tabelas e sem regulamentação especifica, com duvidoso controlo sobre o seu funcionamento; (ii) a perda de influência, participativa, saliente-se, do advogado nos processos contenciosos, vendo serem atribuídas matérias da sua exclusiva a outras profissões, é uma consequência da perda de influência social do advogado, sem que a Ordem seja parte activa na elaboração de programas de fundo para a justiça. Ou seja, assistimos, sem resposta à medida do problema, a uma desconsideração real e efectiva da condição social, profissional e económica das advogadas e advogados portugueses.

Torna-se, assim, essencial e urgente imprimir um novo rumo à Ordem dos Advogados, começando logo na imposição da advocacia na discussão legislativa. Aí, através de um profundo debate, que não pode ser adiado, cabe defender o estatuto do advogado, formar no acesso à profissão, lutar pela deontologia, enquanto ética própria do Advogado, quer na vertente disciplinar, quer na questão pedagógica, abordar todos os intervenientes da justiça, afirmando os advogados, regular o acesso ao Direito, para todos os que precisam, regulamentar a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores impondo um equilíbrio geracional, pensar o papel do advogado no espaço europeu e lutar contra a procuradoria ilícita, em todas as suas vertentes, sem esquecer a imposição de um modelo assistencialista próprio, que proteja o advogado na saúde e na doença.

É um facto: a Ordem dos Advogados, por inúmeros factores, perdeu influência social e política, afastando os advogados do centro do debate dos grandes temas da justiça, dos grandes temas da sociedade. São várias as razões para tal, é certo, mas urge actuar, sob pena dos danos infligidos aos advogados serem irremediáveis. A título de exemplo e observando o período eleitoral que vivemos, nenhum dos advogados com quem falei nos últimos dias consegue enunciar duas propostas apresentadas pelos principais partidos políticos e que tenham a advocacia como foco. Não por ignorância, mas porque a nossa profissão não é tema! Para pior, do debate programático sobre a justiça, lamentavelmente curto de tempo e órfão de ideias, só há uma coisa unânime entre partidos: a ausência de referências à advocacia. Ora, permitam-me, esta ausência de debate sobre a nossa profissão, os seus limites, o seu alcance, o seu caminho, terá uma consequência efectiva para toda a sociedade: o enfraquecimento da advocacia, do papel do advogado, representa a diminuição de garantias e o empobrecimento do Estado de Direito. Se a nossa é a profissão da Liberdade, da luta incessante pela sua afirmação, no respeito pelos Direitos, Liberdades e Garantias, não deixa de ser verdade que esses princípios só se preenchem através do respeito pelo exercício “da advocacia”, com a abrangência da exclusividade da prática dos actos próprios. Pelo que esse é o começo, permitam-me, da discussão sobre o futuro, uma vez que não podemos deixar de impor algo que há uns era adquirido e que agora, pasmemo-nos, está em risco: “o exercício da advocacia é um exclusivo de advogadas e advogados”! Será 2022, que nos trará, entre outras, eleições na Ordem dos Advogados, o ano da advocacia? É que, repetimos, há danos que são irremediáveis!

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