Estado perdoa 81 milhões a empresário que estava a ser julgado por burla ao BPN

A Parvalorem, empresa criada para ficar com os activos tóxicos do BPN, reclamava em tribunal mais de 104 milhões de euros ao empresário Carlos Marques, acusado de alegadamente ter pedido empréstimos que nunca pagou. A poucos dias da sentença, houve um acordo entre as partes.

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A investigação sobre este caso começou em 2010 Raquel Esperança

Desde o Verão do ano passado que o empresário do ramo imobiliário e automóvel Carlos Marques tentava chegar a um acordo para pôr fim ao processo em que estava a ser julgado por três crimes de burla qualificada por alegadamente ter lesado o antigo BPN em mais de 104 milhões de euros.

A Parvalorem, empresa do Estado, criada para ficar com os activos tóxicos do banco nacionalizado em 2008 e entretanto extinto, começou por não aceitar a proposta, mas acabou por ceder em Dezembro, já com o julgamento finalizado e pouco antes de o juiz proferir a sentença.

A empresa pública perdoou, assim, cerca de 81 milhões de euros ao empresário, uma vez que, entre bens e dinheiro, num total de 18 milhões de euros, que já estavam à guarda do processo, Carlos Marques comprometeu-se a pagar mais cinco milhões de euros, num prazo de cinco anos, dando como garantias bens que superam esse valor, caso falhe o pagamento. O procedimento criminal contra o empresário até já foi extinto, tendo a Parvalorem informado o tribunal do acordo.

O valor e o prazo que constam do acordo são os mesmos da proposta inicial do empresário. A única diferença é que na primeira tentativa de acordo Carlos Marques apenas dava como garantias, para o caso de falhar os pagamentos, um parque de estacionamento no Algarve e imóveis num valor inferior a dois milhões de euros. A defesa do empresário alegava que o parque apresentava uma elevada rentabilidade, mas, depois de ter sido feita uma avaliação, tal não se veio a confirmar.

Fonte ligada à Parvalorem explicou ao PÚBLICO que este processo, desde o seu início,” vinha carregado de vicissitudes” e que, mesmo que Carlos Marques fosse condenado, tem poucos bens em seu nome e não havia garantias de alguma vez pagar o que lhe era reclamado.

Ministério Público chegou a arquivar o processo

A mesma fonte recordou a luta que a Parvalorem travou com a Justiça para conseguir levar o empresário a julgamento. Em 2016, após oito anos de investigação, o Ministério Público (MP) considerou não existirem indícios suficientes para o julgar por burla qualificada e arquivou o processo. A Parvalorem tentou, sem sucesso, reverter a decisão, pedindo a abertura da instrução do processo. A juíza de instrução considerou que não existiam indícios de práticas criminosas.

A Parvalorem não se conformou e recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que no Verão de 2018 lhe deu razão, mandando julgar o empresário. Os juízes desembargadores não só sublinharam a existência de indícios de uma “fraude gigantesca” como apontaram para a possibilidade de Oliveira Costa e o genro terem agido “em conluio com o arguido”.

“A factualidade que se indicia, assente essencialmente em documentos e depoimentos de testemunhas, revela uma conduta astuciosa, assente num estratagema bem urdido, dando a aparência de normais negócios de financiamento de projectos de investimento”, refere o acórdão da Relação de Lisboa.

Tendo em conta todo este historial, fonte da Parvalorem considera positivo o facto de a empresa pública ter conseguido arrecadar cerca de 23 milhões de euros dos 104 milhões que estavam em dívida. Acrescem ainda outros factos que levaram a Parvalorem a aceitar a proposta de Carlos Marques: estavam pendentes dois recursos da defesa do empresário.

“Um recurso cuja sorte poderia colocar em causa a legitimidade da intervenção da Parvalorem como assistente no processo e um outro relacionado com a admissão do pedido cível da Parvalorem, em virtude de não constar na cedência de créditos do BPN, cedências de créditos resultantes de indemnizações”, explicou a mesma fonte.

A investigação remonta a 2010. Este é um caso com mais de 12 anos, que diz respeito a factos com 14 e 16 anos e cujo julgamento começou apenas em Julho de 2019.

Juiz fez alteração dos factos na última audiência

Na última sessão do julgamento, a 24 de Setembro de 2021, o juiz procedeu à alteração de alguns factos: Carlos Marques vinha acusado de ser autor de três crimes de burla qualificada, mas o juiz entendeu que na acusação deve constar que foi co-autor.

Vários testemunhos ouvidos em tribunal indicaram que o alegado esquema levado a cabo pelo empresário para conseguir os empréstimos do então BPN seria do conhecimento de Oliveira Costa, o então presidente do banco que entretanto morreu, e do seu genro João Abrantes.

De acordo com o despacho do juiz, a que o PÚBLICO teve acesso, entre 2006 e 2008 “o arguido Carlos Marques era detentor de inúmeras sociedades comerciais, sendo também quem as controlava através de pessoas da sua confiança, que designava para os diferentes corpos sociais, nomeadamente como administradores ou gerentes”. Estavam entre essas sociedades a Vencimo, a Futurbelas, a Imonamur, a Beyond Home e a Espaço Curvo.

Segundo o mesmo documento, em 2006 terá sido delineado um plano “entre o arguido Carlos Marques, Oliveira Costa e o genro deste, João Abrantes”, no sentido de “ser facilitada internamente pelo BPN a concessão de créditos de que o primeiro beneficiaria directamente e em primeira mão, ainda que por intermédio das sociedades de capitais detidas por si, que se apresentavam a solicitá-los e cujos destinos o mesmo controlava através de pessoas da sua confiança”.

Além da “ocultação do verdadeiro interessado na obtenção dos créditos a alguns funcionários do BPN”, da imputação passou a constar a apresentação de “avaliações imobiliárias baseadas em cenários irreais, de acordo com os planos de urbanismo vigentes à data, determinantes para a inflação significativa do valor dos imóveis que se destinariam a servir de garantia ao reembolso dos empréstimos”.

“Os mentores de um tal plano (…), traduzido na concessão de empréstimos celebrados com o BPN de montante global que se elevou a 72,5 milhões de euros [a Parvalorem reclama 104 milhões porque contabiliza os juros]”, sabiam que [esses empréstimos] não eram “destinados realmente às finalidades para que formalmente haviam sido aprovados, e ainda que não seriam pagos”, acrescenta o despacho.

Carlos Marques entregou projectos de investimento “que jamais pensou executar, apresentando ao BPN avaliações de imóveis baseadas em pressupostos de viabilidade urbanística improvável ou incerta, permitindo, dessa forma, empolar os valores dos imóveis que se propunha dar como garantia dos empréstimos”.

A relação do arguido com o BPN remonta a 2006 e essa ligação nasceu da amizade que tinha com João Abrantes, genro do então presidente do conselho de administração do BPN, segundo o despacho que sublinha que, entre 2006 e 2008, o empresário conseguiu quatro empréstimos para quatro empresas: a Vencimo, a Futurbelas, a Imonamur e a Beyond Home.

Oliveira Costa e João Abrantes tinham uma empresa, a Zirma, através da qual pretendiam adquirir um conjunto de terrenos que integravam a Herdade da Lisboa e já tinham pedido um empréstimo a outro banco. Mas acabaram por conseguir crédito em nome de uma das empresas de Carlos Marques, a Vencimo. Dos 35 milhões de euros pedidos pela Vencimo ao BPN, cerca de 2,2 milhões de euros foram transferidos desta empresa para a Zirma.

Também ainda de acordo com a nova versão dos factos, o produto da liquidação da massa insolvente das sociedades Futurbelas, da Imonamur e da Beyond Home foi de apenas 8,3 milhões de euros.

Processo chegou a ter 50 arguidos

O inquérito deste processo teve origem numa comunicação das autoridades suíças relativa à forma de movimentação de grandes somas de dinheiro. Em 2009, comunicaram a Portugal que suspeitavam de um esquema em que o dinheiro seria colocado numa instituição de crédito suíça, seguindo-se depois uma fase de circulação e estratificação e posterior utilização no sector imobiliário – ou seja, Carlos Marques estaria a branquear capitais.

O processo chegou a ter 50 arguidos, entre os quais Luís Duque, antigo dirigente do Sporting e vereador na Câmara de Sintra, suspeito de ter dado tratamento de favor ao investidor imobiliário nos negócios que este tinha neste concelho, nomeadamente no licenciamento de uma bomba de gasolina. Acabou, porém, por ser ilibado ainda durante a investigação.

Já o empresário Carlos Marques foi detido a 30 de Outubro de 2010, tendo ficado em prisão preventiva. Passou depois para prisão domiciliária, com pulseira electrónica, em Fevereiro de 2011, sendo libertado pelo Tribunal da Relação em Julho desse ano.

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