Por detrás das cortinas do silêncio

Para nós, portugueses, à luz da memória colectiva e da identidade nacional, a que se junta a experiência histórica da emigração e da imigração, é algo que dói. Ou deveria doer.

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"Que futuro poderemos desvendar a estas crianças? Que educação lhes proporcionaremos?" Ari Jalal/Reuters

Agora que se aproxima o final do ano, questiono-me como será 2022 para os milhares de crianças que se encontram em campos de refugiados, sabido que, por todo o mundo, cerca de metade dos refugiados são crianças deslocadas, que (sobre)vivem longe de casa e, muitas vezes, separadas das famílias. Seremos capazes, no novo ano, de assegurar os seus direitos? Assegurar “a paz, o pão, habitação, saúde, educação”, como canta Sérgio Godinho?

Passado o choque provocado pelas imagens do pequeno Aylan, já cadáver, devolvido pelo mar numa praia de Bodrum, na Turquia, em 2015, — símbolo da tragédia humana de que homens, mulheres e crianças são vítimas na busca desesperada de uma vida mais digna nas sociedades do ocidente europeu, que constituem pólos de atracção irresistível —, ainda há muito por fazer.

Seremos nós capazes, em 2022, de reforçar a aplicação do quadro jurídico já aprovado pela União Europeia, e contemplar questões como a do reagrupamento familiar? As crianças são altamente resilientes e, com apoio psicossocial e educação, poderão ser ajudadas a reconstruir as suas vidas, agora suspensas.

Seremos capazes, em 2022, de “olhar” com maior atenção para a situação em que se encontram essas meninas e esses meninos e assegurar os seus direitos face todas as formas de violência, abuso, negligência e exploração? Seremos capazes de minimizar a crise migratória no Mediterrâneo?

Tenho fundadas esperanças que sim, pois não será possível alhearmo-nos dos cenários dramáticos das chegadas clandestinas às fronteiras e aos portos de milhares de crianças, muitas a viajar sozinhas, na esperança de se reunirem aos pais já em território europeu.

Que futuro poderemos desvendar a estas crianças? Que educação lhes proporcionaremos? Como lidaremos com as suas naturais frustrações, num porvir que não será risonho para todas?

Como construiremos o seu carácter, valores, perspectivas de vida enquanto jovens e adultos? Sim, se a doença não os vencer, serão adultos que se desejam integrados e produtivos nas sociedades de acolhimento. Em Março deste ano, o Governo grego e a Comissão Europeia lançaram o apelo à recolocação de cerca de 5500 crianças, que se encontravam na Grécia. É assustador!

Para nós, portugueses, à luz da memória colectiva e da identidade nacional, a que se junta a experiência histórica da emigração e da imigração, é algo que dói. Ou deveria doer.

Fiz parte do grupo dos primeiros voluntários a inscreverem-se na Plataforma de Apoio aos Refugiados e, desde então, tenho tentado responder a todas as solicitações e desafios que me são apresentados.

Teremos, todos, de abraçar este desiderato e sensibilizar a sociedade para a problemática dos refugiados, promovendo acções que levem à integração das famílias e das suas crianças.

Os governos de Portugal, as organizações humanitárias e a sociedade civil têm procurado demarcar-se da vergonha das políticas de combate às migrações, que ainda grassam pela Europa, com demonstrações xenófobas, egoístas e irracionais, contrapondo exemplos de modelos de acolhimento, que se têm revelado bem-sucedidos, próprios de uma sociedade pluriétnica e multicultural.

Orgulho-me de, na União Europeia, Portugal ser “o sexto país que mais refugiados acolheu ao abrigo do programa de recolocação da UE, recebendo 1550 refugiados vindos da Grécia (1190) e de Itália (360), entre Dezembro de 2015 e Abril de 2018”. Estes refugiados vivem hoje em 97 municípios de Portugal.

Orgulho-me da visão traduzida na iniciativa do Presidente Jorge Sampaio, que lançou a Plataforma Global de Assistência Académica de Emergência a Estudantes Sírios e permitiu a continuação dos estudos a muitos jovens sírios refugiados de uma guerra assassina.

Nós, portugueses, temos particulares razões para apoiar estas causas. Dos Descobrimentos no século XV — quando os europeus estavam na Europa, os africanos em África e os asiáticos na Ásia —, à colonização e à “mala de cartão”, que simbolizou a emigração portuguesa dos anos 60 e 70 do século passado, até à Europa da livre circulação, Portugal esteve na dianteira do encontro de culturas.

Foi neste paradigma que fui educada, me fiz profissional de Educação e pessoa. Pela minha parte, guardarei uma “passa de uva”, no bater das 12 badaladas, para ter forças para combater qualquer cortina de silêncio sobre esta questão. Feliz 2022!

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