Fatma quer saber quanta água tem o mar

O pai de Fatma partiu para o outro lado do mar, à procura da ilha que os libertaria das explosões e do sofrimento. Um livro criado a partir da história de três irmãos refugiados que chegaram a Portugal.

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Mariana Rio
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Capa do livro “Fatma”, edição da Associação para a Promoção Cultural da Criança Mariana Rio

“Comecei a escrever esta história há uns anos, após um encontro com três irmãos refugiados que estudavam numa escola em Seia. Registaram os seus nomes no meu caderninho, para eu não os esquecer: Fatma, Maryam e Ahmed”, conta ao PÚBLICO Conceição Dinis Tomé, e acrescenta: “Não os esqueci e não consegui deixar de pensar na longa viagem que haviam feito desde a Síria até à serra da Estrela, fugindo da guerra e do medo.”

O livro começa com a protagonista a querer saber “quanta água tem o mar”, já que o pai foi procurar o futuro a uma ilha e teria de o atravessar. Sem notícias, a mãe da menina também se faz ao caminho. “O teu pai deve ter-se perdido nos caminhos das águas… E não temos mais tempo para ficar aqui à espera…”

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Percorreram floresta, savana e deserto. Só faltava atravessar o mar. “O barco de borracha era pequeno para tanta gente.” E dá-se o naufrágio. É por isso que a menina andou tanto tempo “silenciosa e triste”. Depois de contar a sua história, Fatma deixou de se “sentir vazia de palavras” e, “devagarinho, começou de novo a viver”.

A investigadora do Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais (da Universidade Aberta) conta-nos por email: “Inspirei-me na vida daqueles três irmãos, mas esta é também a história de muitas outras meninas, de outras Fatmas e das suas famílias, provenientes da Síria, da África subsariana ou de outros lugares do mundo.”

Aqui, faz com que olhemos para “as longas e difíceis viagens de quem procura um refúgio, cruzando fronteiras e atravessando desesperadamente o mar em embarcações tão frágeis como as suas vidas”. Para Conceição Dinis Tomé, esta é também “uma história sobre a solidariedade, a esperança e o poder das palavras”. E ficaria muito feliz se este livro pudesse “ajudar crianças que tenham vivido viagens traumáticas como a de Fatma a ultrapassar esses momentos tão dolorosos das suas vidas”.

A também autora de O Caderno do Avô Heinrich (editado pela Presença e vencedor do Prémio Maria Rosa Colaço 2012, na categoria Literatura Juvenil) “gostaria muito que este livro ajudasse a afastar medos e a desconstruir preconceitos que impedem o acolhimento de seres humanos em situação de grande vulnerabilidade”. Pois acredita que “os livros têm dentro de si o poder da fraternidade”.

Fatma é editado pela Associação para a Promoção Cultural da Criança, na colecção Ler com Valores.

Acrescentar o que o texto não diz

Para Mariana Rio, “ilustrar uma história é sempre desafiante, complexo, iterativo e laborioso”. E descreve ao PÚBLICO: “Eu tenho sempre muito interesse e prazer nesse processo todo. Ilustrar um texto, em primeira instância, implica levantar muitas perguntas e procurar respostas. Neste projecto em concreto, a minha pesquisa incidiu bastante sobre a geografia, a cultura e o texto informativo. Depois, seguiu-se uma fase de exploração de diversas ideias, tornadas visuais, para a estrutura narrativa, para o desenvolvimento das personagens, para a concepção dos cenários.”

Debateu-se então com várias preocupações em simultâneo, “algumas do ponto de vista gráfico, outras de natureza semântica e narrativa”. O texto deixava-lhe “espaço para explorar imagens complementares”, diz. E conclui: “Há coisas que o texto não diz e que a imagem pode dizer, acrescentar, enfatizar ou, até, criar ambiguidade. É isso que me faz vibrar enquanto ilustradora.” 

Assim, em Fatma, deu muita importância às emoções, às relações e aos laços afectivos. “Há três personagens muito fortes, a menina, que interpretei como um símbolo da fragilidade humana, a sua mãe, que vi como a protecção e a resiliência, e o pai, que representa a esperança.”

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Na fase final do processo, “estava apenas preocupada com toda a parte gráfica e as decisões mais técnicas que isso envolve”. Ou seja: “A escolha de texturas, materiais, cores; a pintura, por camadas; todos os detalhes e microdecisões.” É um processo de “constante refinamento e aprimoramento”. Para resumir o seu processo criativo. “Tudo é tão complexo, desafiante e maravilhoso. Adoro a minha profissão!” 

Mariana Rio acrescenta ainda, quando lhe perguntamos se ficou satisfeita com o resultado final: “Só entrego um trabalho depois de várias fases de revisão, iteração e correcção, quando me parece que o projecto chegou a um ponto em que há maturidade a todos os níveis e quando estou consciente de que dei o meu melhor, naquele tempo. Assim, posso responder que sim, estou!”

No entanto, também não. “Nunca estou plenamente satisfeita com o que faço, porque há sempre uma vontade de continuar a escalar a montanha. Antes, ficava chateada com essa sensação de insatisfação, que não consigo compreender (como disse o António Variações), mas agora penso que isso faz parte do processo de evolução natural e que é importante para mim. É um mecanismo de defesa para não me tornar cinzenta ou redundante. Há sempre tanto espaço para evoluir e para aprender. É isso que torna tudo interessante!”

Neste livro, usou técnica mista, “com pintura e monotipia, entre os meios analógicos e digitais”. Mariana Rio tenta “combinar o melhor de dois mundos e encontrar soluções que tenham, por um lado, qualidade gráfica e, por outro, uma plasticidade interessante”. Conseguiu.

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