Uma presidência que não fica para a história

Com a eventual exceção da Cimeira UE-Índia, no essencial a quarta Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia marcou sobretudo o passo. Com alguns avanços importantes em alguns aspetos, com fracassos noutros, mas sem ímpeto de rasgar novos horizontes como os tempos que vivemos pedem.

Chegou ao fim a quarta Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia (PPUE).

Em perspetiva histórica, Portugal ocupou este cargo em momentos particularmente importantes da integração europeia. Durante a primeira presidência portuguesa, no primeiro semestre de 1992, foi assinado o Tratado de Maastricht, que criou a União Europeia, e ainda foi assinado o Acordo para o Espaço Económico Europeu. A segunda presidência portuguesa, no primeiro semestre de 2000, ficou marcada por importantes passos dados no sentido da introdução do Euro como moeda do Mercado Único, pela adoção da Estratégia de Lisboa para a dinamização da economia europeia num mundo cada vez mais digital, pela realização da I Cimeira UE-África e pela assinatura dos Acordos de Cotonou e o início da cooperação entre a União Europeia e os países ACP. A terceira presidência portuguesa, no segundo semestre de 2007, ficou marcada pela assinatura do Tratado de Lisboa, um grande momento de reforma institucional e política para a União, depois do projeto fracassado da Constituição para a Europa, para além da realização da I Cimeira UE-Brasil e a II Cimeira UE-África.

As circunstâncias em que esta PPUE ocorreu afiguravam-se como igualmente históricas e profundamente marcadas pela pandemia de covid-19 que ainda assola o continente europeu. No início do período da presidência, tinha igualmente acabado de começar o processo de vacinação contra a covid-19 à escala europeia e a atenção política começava a voltar-se para o relançamento da economia da Europa e, aproveitando este momento de transição, para reestruturar os alicerces fundamentais do Mercado Único com uma aposta basilar na dupla transição energética e digital. Do ponto de vista externo, o momento da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia foi também marcado por algumas oportunidades cruciais para o futuro da UE e da Ordem Internacional: a tomada de posse de uma nova administração nos Estados Unidos da América, comprometida com um regresso ao multilateralismo e às históricas alianças com as democracias ocidentais; a conclusão do longo e penoso processo do “Brexit” e a necessidade de estabelecer relações funcionais e positivas com um Reino Unido pós-europeu; a realização de uma cimeira UE-Índia e a possível elaboração de uma grande estratégia europeia para o Indo-Pacífico; a possibilidade de se vir a realizar uma cimeira UE-África.

Apesar das oportunidades e desafios deste momento histórico da construção do projeto europeu e do histórico acima descrito das presidências portuguesas, a comparação com as suas predecessoras deve ter em conta alguns aspetos contextuais importantes em que ocorreu esta quarta PPUE. Por um lado, os grandes eventos marcantes das presidências anteriores resultaram de processos longos que em muito extravasam os limites temporais das presidências portuguesas. Por outro lado, esta quarta Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia foi a primeira a realizar-se após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, que alterou profundamente os poderes e predominância da presidência do Conselho no arranjo institucional e nos processos políticos da União Europeia.

Tendo em conta este contexto, o balanço que se pode fazer da PPUE é a de que foi uma Presidência positiva, mas que não marcou de forma significativa o projeto europeu. Certas iniciativas merecem destaque como passos positivos, mas podem também identificar-se alguns fracassos de nota.

Em relação a passos positivos a considerar que resultaram desta presidência, importa destacar:

  1. O acordo entre o Parlamento e o Conselho em relação à primeira Lei Europeia do Clima: o acordo alcançado entre o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia irá permitir aprovar brevemente a primeira Lei Europeia do Clima, que, alinhada com os objetivos do Acordo de Paris, deverá implementar mecanismos fundamentais para alcançar a meta europeia de neutralidade carbónica de 2050, nomeadamente através da criação de mecanismos de monitorização e fiscalização do cumprimento das metas estabelecidas e de propostas concretas como o fim do financiamento de combustíveis fósseis; será uma peça fundamental para alcançar o grande objetivo europeu de uma transição energética na Europa e criação de um Mercado Único mais verde;
  2. O acordo entre o Conselho da União Europeia e o Parlamento Europeu em relação a uma diretiva de transparência fiscal: consagrando um mecanismo de reporte país a país, esta futura diretiva deverá criar uma obrigação para grandes multinacionais (europeias ou não) de declaração de impostos sobre o rendimento pagos em cada Estado-membro, de modo a garantir transparência fiscal em todo o território da União;
  3. Acordo político para a Reforma da Política Agrícola Comum: depois de três anos de negociação, a adoção de um acordo político entre os Estados-membros para a reforma da PAC foi um passo bastante positivo numa área tão sensível de competência europeia. Os grandes objetivos deste acordo político para a reforma da PAC prendem-se com a transformação da agricultura europeia para as necessidades e desafios do século XXI, nomeadamente no que diz respeito à sustentabilidade e competitividade económica do mercado agrícola europeu, bem como a sua sustentabilidade social e ecológica;
  4. A aprovação da Declaração de Lisboa “Digital Democracy with a Purpose: esta declaração será um passo importante, ainda que pouco decisivo nesta fase inicial, no estabelecimento de um conjunto de princípios fundamentais para o espaço digital na União Europeia, desde a proteção de direitos humanos no espaço digital, à proteção da “European Way of doing Business” e ao combate à desinformação e proteção das democracias e do Estado de Direito na Europa. Em Portugal, e em antecipação desta declaração adotada a nível europeu, foi adotada uma Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital com uma medida controversa de restrição de conteúdos digitais com o objetivo de combate à desinformação, mas a declaração europeia não contém nenhuma medida semelhante;
  5. A aprovação dos vários Planos de Recuperação e Resiliência nacionais e a implementação do programa de apoios NextGen EU: após negociações difíceis entre os vários Estados-membros durante a presidência alemã, a PPUE foi capaz de gerir os processos de transformação destas negociações em planos concretos para a atribuição de fundos europeus aos Estados-membros para a recuperação e relançamento das economias europeias e do Mercado Único, bem como de promover a aplicação desses fundos nos objetivos de transição energética e digital para o futuro do Mercado Único;
  6. Cimeira UE-Índia e reaproximação aos Estados Unidos da América: no plano das relações externas da União Europeia, foram também dados dois passos importantes. Por um lado, a realização da Cimeira UE-Índia foi um momento importante de aprofundamento das relações entre a União e este parceiro geoestratégico e económico essencial no Indo-Pacífico, que pode vir a desempenhar um papel importante no futuro das relações da União com essa região. Por outro lado, a reaproximação entre a União Europeia e os Estados Unidos da América, após a tomada de posse da nova Administração Biden, é um momento positivo de relançamento das relações transatlânticas, mas fica marcado por uma continuada indefinição da UE em relação à redefinição da ordem internacional e ao ressurgimento de um mundo bipolar ou multipolar.

No que diz respeito a pontos negativos da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, importam destacar os seguintes:

  1. Falta de coordenação a nível europeu no que diz respeito às medidas de combate à pandemia e, especialmente, quanto ao Certificado Digital: ainda que a ideia da implementação de um Certificado Digital que permita a circulação no espaço europeu no contexto de pandemia seja uma excelente ideia, esta só atingirá os seus objetivos quando for implementada de forma uniforme por todos os Estados-membros. Se o objetivo é permitir o retomar da circulação de bens, serviços, capitais e, especialmente, de pessoas no espaço europeu, esse objetivo não se cumprirá enquanto o mecanismo do Certificado Digital não for aplicado de forma uniforme por todos os Estados-membros. As negociações para a aplicação deste mecanismo, que se atrasaram consideravelmente, ficam ainda marcadas pela resistência da Alemanha na sua utilização, algo que se espera que possa ser ultrapassado pela presidência eslovena;
  2. Nomeação do representante português para a Procuradoria Europeia: a nomeação do procurador José Guerra para a Procuradoria Europeia ficou envolta numa polémica bastante desprestigiante para Portugal, logo nos primeiros dias da Presidência Portuguesa do Conselho. Tendo sido noticiado que certas informações curriculares transmitidas às instâncias europeias sobre o candidato haviam sido “falseadas”, com o objetivo de o preferir em relação a outros candidatos, estas informações nunca foram cabalmente esclarecidas pelo Governo Português e foram alvo de nota e condenação por parte de várias instâncias a nível europeu, tendo o assunto sido inclusivamente debatido no Parlamento Europeu.
  3. Cimeira Social no Porto: apesar de ter sido uma iniciativa muito meritória em princípio, esta cimeira não deixará praticamente qualquer legado objetivo e palpável para o futuro da construção do Pilar Social Europeu. Essencialmente, a sua fraqueza prende-se com o facto de a maior parte dos assuntos abordados durante os trabalhos dizerem respeito a competências que permanecem no âmbito da soberania dos Estados-membros e não da União, pelo que esta última fica impedida de avançar com medidas concretas de promoção das conclusões da Cimeira;
  4. Não realização da Cimeira UE-África: originalmente agendada para o período da presidência alemã e adiada pelo desenvolvimento da situação pandémica no globo, não foi ainda durante a presidência portuguesa que foi possível realizar a cimeira UE-África. Apesar de o Alto Representante Borrell ter afirmado que 2021 seria o ano de África para a União Europeia, o desenvolvimento da pandemia de covid-19, novamente, forçou o adiamento desta cimeira para data mais tardia, já fora do limite temporal da PPUE;

Citando Lewis Carroll na sua fascinante obra Through the Looking-Glass, And What Alice Found There: “Now, here, you see, it takes all the running you can do, to keep in the same place. If you want to get somewhere else, you must run at least twice as fast as that!” A Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia parece ter caído na armadilha destas palavras da Rainha Vermelha na obra de Carroll: num momento de relançamento do projeto europeu para o pós-pandemia, num tempo de projetos ambiciosos de transição energética e digital para as economias europeias, numa era de aceleração histórica e de reconfiguração da ordem internacional, ficar parado, ou andar devagar, é o mesmo que andar para trás. Para ficar no mesmo lugar seria preciso correr; para avançar seria preciso um rasgo mais.

Com a eventual exceção da Cimeira UE-Índia, no essencial a PPUE marcou sobretudo o passo. Com alguns avanços importantes em alguns aspetos, com fracassos noutros, mas sem ímpeto de rasgar novos horizontes como os tempos que vivemos pedem. Sem um projeto ambicioso digno deste momento histórico, a quarta Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, embora globalmente bem-sucedida, não fica para a história.

Secção de Negócios Estrangeiros do Conselho Estratégico Nacional do PSD

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico​

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