PRR aloca 77 milhões para pagar servidões administrativas na rede primária de gestão de combustível

São 77,67 milhões para servidões administrativas e mais 8,85 milhões para identificação de proprietários, avaliações e negociações. A informação foi avançada pelo secretário de Estado das Florestas e do Ordenamento do Território na III Conferência Gestão da Vegetação, em Pampilhosa da Serra.

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Nelson Valente

O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) de Portugal, entregue pelo Governo à Comissão Europeia em finais de Abril, vai alocar mais de 86,5 milhões de euros para financiar a criação de servidões administrativas em 21 700 hectares de faixas de interrupção de combustível da rede primária.

Deste montante, 77,67 milhões de euros destinam-se ao pagamento aos proprietários dos terrenos expropriados e 8,85 milhões têm como finalidade financiar “todo o trabalho prévio à constituição de servidões, nomeadamente identificação de proprietários, levantamentos prediais, avaliações e negociações”, revelou ao PÚBLICO João Catarino à margem da III Conferência Gestão da Vegetação, promovida pela E-Redes.

“Temos vindo a implementar servidões administrativas nas faixas de gestão de combustível da rede primária, mas, essencialmente, nas linhas de cumeada”, explicou o secretário de Estado das Florestas e do Ordenamento do Território, notando que o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) “tem vindo a construir essas faixas de há dois anos para cá, mas, essencialmente, em solo público, em baldios, por exemplo”, havendo já “mais de um milhar de quilómetros feitos”.

Agora, diz João Catarino, “precisamos de o fazer em solo privado”. Mas, para tal, reconhece o governante, “precisamos de compensar o proprietário pelo facto de estarmos a impor uma faixa improdutiva, na prática”, admitindo que tal não tinha sido feito até então por falta de verbas para indemnizar os donos dos terrenos. “Havia sempre essa limitação”, assume o secretário de Estado.

“Agora já temos alocados neste PRR 77 milhões de euros para a constituição dessas servidões administrativas”. E “o ICNF já está a trabalhar”, garante o governante, assumindo que “também é ideia do Governo atribuir competências à Florestgal para fazer este trabalho e iniciar o contacto dos municípios com os proprietários para implementarmos e pagarmos por 20 anos essa servidão administrativa”. E esse trabalho “já está em curso”.

A Florestgal, a que preside desde Julho de 2018 José Miguel Abreu de Figueiredo Medeiros, é a primeira empresa pública de gestão e desenvolvimento florestal a ser criada em Portugal. Está presente em 26 concelhos, de norte a sul do país, com 86 propriedades, num total de cerca de 14 mil hectares de floresta.

Pagamento ao metro quadrado e de uma só vez

O processo de indemnização aos donos dos terrenos a expropriar para a criação dessas servidões administrativas far-se-á “em função da área, que será calculada ao metro quadrado de cada proprietário para essa servidão por 20 anos”. Será “pago de uma vez só”, garantiu João Catarino.

“A ideia é, quando a área dessa servidão estiver identificada, serem colocados editais e haver uma equipa dedicada que trabalhará em cada município na identificação dos proprietários e na realização do levantamento da área que fica sujeita à servidão”.

Trata-se de “um processo expropriativo”, confirma o secretário de Estado, que “tem de correr”, mas que o Governo pretende “que seja o mais célere possível”. “Até porque”, continua João Catarino, “agora temos esta disponibilidade financeira e gostávamos de implementar rapidamente”.

Ciente de que o solo é “um bem cada vez mais escasso” e de que “o solo fértil tem de ser valorizado”, o secretário de Estado não tem dúvidas: “Temos de encontrar soluções que sejam compatíveis com o edificado, para acrescentar valor ao solo privado destes proprietários.”

Estas servidões administrativas em terrenos privados limitam-se, porém, à rede primária de gestão de combustíveis. Não serão criadas nas faixas de gestão de combustível por onde passam as linhas eléctricas. Aí, frisa João Catarino, “é uma responsabilidade das empresas” – REN e E-Redes – que têm como missão a distribuição de energia pelo território.

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Rede “precisa de ser modernizada”

Ângelo Sarmento, administrador E-Redes, assume essa missão. Na III Conferência Gestão da Vegetação, que esta quinta-feira decorreu em Pampilhosa da Serra e foi transmitida em directo pelo PÚBLICO, o gestor expressou a vontade da companhia de “estreitar relações com vários parceiros no sentido de encontrar as melhores práticas” de gestão da vegetação ao longo dos cerca de 180 mil quilómetros de linhas eléctricas que gere.

Entre os especialistas que intervieram no evento, Luís Marcelino Ferreira, professor catedrático do Instituto Superior Técnico, apresentou um estudo sobre o impacto do enterramento da rede eléctrica em zonas de elevado risco ambiental fortemente arborizadas. A questão, disse, “está na ordem do dia de todas as empresas de distribuição de energia eléctrica”, sendo que a rede de distribuição de energia “precisa de ser modernizada e de renovar os seus activos”, que são já “muito ‘idosos’”. E “os atributos técnicos da rede estão prontamente disponíveis”, o que constitui “uma vantagem tremenda”.

A grande questão está nos custos. Para as empresas e para os clientes da energia. Segundo Luís Marcelino Ferreira, estes “dependem das condições demográficas, da natureza dos solos, do custo da abertura da vala”, entre outros factores. E “impactam na tarifa” de electricidade, além de que “a concretização exige ambição e enquadramento regulatório favorável”.

Uma coisa é certa: “Estamos a falar de milhares de milhões de euros. Muito, muito dinheiro”, mas esta é “uma tremenda oportunidade” e também “uma prioridade para reduzir custos ambientais e aumentar a resiliência da rede”.

AIGP: “Um bom modelo de gestão”

No debate que se seguiu às várias apresentações, moderado pelo director do PÚBLICO, Manuel Carvalho, e perante a questão de perceber, enquanto sociedade, o que sabemos mais hoje relativamente à gestão da vegetação e à prevenção do risco de incêndio do que sabíamos há anos atrás, Carlos Fonseca, director científico e tecnológico do ForestWISE – Laboratório Colaborativo para a Gestão Integrada da Floresta e do Fogo, foi lapidar: “Houve uma mudança da demografia nos territórios.” E isso, diz, “levou a uma percepção maior do risco que os territórios do mundo rural representam”. O também professor da Universidade de Aveiro não tem dúvidas de que “a demografia é fulcral”, “está tudo muito conectado com a questão demográfica”, pelo que a questão está em saber “como podemos trazer novos agentes” para o território e “dar um contributo para reduzir os riscos”.

Para Carlos Fonseca a resposta é clara: é preciso “fixar os que estão e atrair mais pessoas” e “associar novas tecnologias de gestão”. No entanto, “esta atractividade só é possível se houver um rendimento associado”.

O dirigente do ForestWISE está ciente de que “o país é muito heterogéneo” e que, por essa razão, “a abordagem para cada região tem de ser diferente”, pelo que “o modelo das AIGP [Áreas Integradas de Gestão da Paisagem], com 1000/1500 hectares, é um bom modelo de gestão. Poderá funcionar. Há vantagens em criar esta visão diferenciada do território. Até porque aquilo que se poderá fazer numa região é diferente de outra. Até ao nível das espécies florestais”.

Planeamento de pequena escala

Joni Vieira, que é arquitecto paisagista e técnico da Montis, Associação para a Gestão e Conservação da Natureza, uma organização não-governamental de ambiente de âmbito nacional que gere mais de 178 hectares de floresta na região Centro, tem opinião análoga.

“Hoje estamos muito melhor em termos de conhecimento científico, mas estamos pior em termos de modelo económico. Antes tínhamos populações. Temos de conseguir perceber como conseguimos voltar a trazer valor económico com a gestão da paisagem”, porque “gerar valor económico com a gestão da paisagem é fundamental”.

Para este técnico, “um erro frequente é trabalhar a uma escala enorme. Passarmos para uma escala mais pequena permite integrar a gestão”. Para Joni Vieira, é preciso “olhar para o território” e para as realidades sociais e económicas locais. E o “planeamento de pequena escala” permite conhecer e “potenciar o que já existe na região”.

Certo é que o conhecimento das regiões e do território “mudou muito nos últimos 20 anos”, afirmou José Miguel Cardoso Pereira, professor catedrático do departamento de Recursos Naturais, Ambiente e Território do Instituto Superior de Agronomia (ISA). E “mudou também muita coisa na atitude, na postura e na receptividade a coisas que até já se sabiam na altura, mas a que não se dava grande crédito”.

“Em 2004/2005, o Tiago Oliveira, que actualmente coordena a Agência para a Gestão Integrada do Fogo, e eu próprio coordenámos uma coisa que se chamava Plano Nacional da Defesa da Floresta contra Incêndios”, continua Cardoso Pereira. “Hoje terminou a elaboração do Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais. A diferença desta terminologia diz tudo”, realça.

O docente do ISA explicou que, “em 2004/2005, via-se o fogo como um problema sectorial. Era um problema da floresta. Hoje fala-se de gestão integrada do fogo. Passou-se de uma visão do fogo como um problema sectorial da floresta para uma visão de um problema territorial, do espaço rural. E que não inclui só a catástrofe, inclui a generalidade do fogo. O fogo dos pastores, o fogo das periferias das povoações onde há áreas agrícolas, que precisam de queimar restolhos ou resíduos de exploração”.

E essa, sublinha José Miguel Cardoso Pereira, “é a alteração mais profunda”. É, pois, preciso “envolver todos os agentes no terreno e sectores da economia”. E “trabalhar numa multiplicidade de escalas”.


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Notícia alterada às 10h47 de 14 de Maio de 2021 para designar por extenso o significado da sigla PRR.

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