O gosto de ler: para uma didáctica da literatura – um contributo (5)

Urge reunir todos à volta da mesa-redonda da educação e, sem estigmas, sem azedumes, sem lutas de egos, olhar para o que verdadeiramente importa: para as crianças e jovens.

Na sequência dos diversos artigos sobre educação, sobre o digital, termino com um artigo esperançoso, optimista. É meu dever fazê-lo, já que, apesar dos escolhos, há escolhas. Escolho a crença na educação, em todos quantos, professores e alunos, pais e decisores políticos, por acaso sentem o coração apertado quando vêem que a nossa vida colectiva está em perigo devido aos diversos factores de alienação e bestialização que nela existem. O optimismo não impede a crítica acérrima, antes abre essa mesma crítica para um crivo de outra ordem: urge reunir todos à volta da mesa-redonda da educação e, sem estigmas, sem azedumes, sem lutas de egos, olhar para o que verdadeiramente importa: para as crianças e jovens. Se o QI diminuiu, importa trabalhar para que tal cenário se altere. Se as aulas não são fecundas, é hora de apostar numa formação de professores mais adequada às exigências contemporâneas.

Neste particular, não podemos ignorar que as tecnologias podem estar ao serviço de uma escola e Universidade mais plenas. Todavia, não podem nunca as tecnologias sobrepor-se: 1) às aulas presenciais; 2) aos livros, aos compêndios, à leitura do papel impresso (as razões de natureza científica expendi-as em artigos anteriores); 3) à biblioteca, lugar do livro e não do ecrã; 4) à competência da escrita, porque sem a literacia literária não há verdadeira literacia digital.

No caso específico do ensino do Português, a formação de professores deve ser da responsabilidade de profissionais que tenham dado provas científicas e pedagógicas públicas. Acções de formação para professores, mas leccionadas por quem, com experiência, estando a par dos currículos, conhecendo a realidade dos alunos e dos docentes, saiba como comunicar, como fazer com que um professor de Português – que pode até nem gostar muito de ler, ou nem sequer estar inclinado a leccionar questões de Gramática – desperte para a sua vocação. Tal como acontecerá com os alunos que tenham a sorte de ter alguém que traz consigo a energia vital para as aulas, descobrindo a liberdade que advém da leitura, da escrita, o potencial de rebeldia que existe em quem, por ser leitor, projecta um futuro diferente, igualmente a esse professor cansado, desencantado, ou simplesmente pouco interessado em ser professor (por questões biográficas, porque a vida o fez ir por ali), se lhe abrem as portas de um quotidiano mais belo, mais livre.

Uma didáctica da Literatura, que jamais se encerre em quaisquer didactismos – o que deve concentrar essa didáctica para os professores de Português é o como ensinar a ler o texto literário e como ensinar a escrever sobre o texto literário (aí é fundamental que o que ministra a formação conheça o ensaísmo e a crítica de ontem e de hoje, esteja a par das investigações em teoria e ciência literárias) –, isso mesmo levará ao desejado perfil do professor. O seguinte perfil: uma mulher e um homem de espírito aberto ao diálogo transdisciplinar, alguém que gozará melhor o prazer de ler Ruy Belo porque sabe quanto o poeta de Toda a Terra amava a música brasileira e as composições de Fauré; um professor que investigará, livre de burrocracias, recorrendo a livros, à sua biblioteca pessoal. Um professor que levará livros para as aulas, sem ignorar o são equilíbrio com o digital. Com os alunos construirá aulas em que há pensamento, palavra e acção: discutir-se-ão as épocas em que viveram Eça e Cesário, meditar-se-á, em redacções bem feitas, com citações e transcrições pertinentes, que novidades parateatrais trouxe Garrett à lírica nacional, de que modo liberalismo e literatura foram projectos do Romantismo. Que actualidade têm as vanguardas do início de novecentos, que movimentos de vanguarda existem hoje?

Uma didáctica da Literatura que leve quem ensina a articular o teatro vicentino com as mentalidades, recuperando Osório Mateus, ou António José Saraiva, lendo os estudos de Cristina Almeida Ribeiro, ou de investigadores de gerações mais novas. Um professor, uma professora, que façam da escola e da universidade o lugar onde viceja a constante defesa da memória. Memória com olhos virados para a construção de um quotidiano mais autêntico, mais livre. E eis as aulas: analisando-se em Vicente a temática do “Mundo ao Contrário"; estudando, via trovadorismo, os sons da língua, ou relacionando esse fenómeno medieval com a cultura musical de hoje (os alunos terão ouvido falar dos cantautores? De Zeca e Sérgio Godinho a Valete ou Carlão, não há uma linhagem a estudar?), as áridas matérias gramaticais – a fonologia e a morfologia – podem ser um instigante campo de trabalho sobre a língua como sistema em mudança.

Com base na música, em pequenos exercícios de redacção, consolida-se a frase em português, alarga-se o vocabulário, constrói-se uma personalidade mais forte, porque sensível. São os alunos o alfa e o ómega da educação – mas é o nosso futuro colectivo que urge perspectivar de outro modo. Sempre a partir do texto literário, ou com incursões no ensaio – isto no 9.º ano e em todo o Secundário –, assim, apresentando ao aluno as interpretações de grandes leitores, aos professores deste novo tempo, ser-lhe-á natural comprarem livros, ver cinema, ir ao teatro. A dar solidez à sua prática docente, o reino das palavras – esse reino que Carlos Drummond de Andrade pediu para que nele entrássemos. O reino da palavra que pensa.

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