O segredo do Vila

“O grande talento do Vila, além obviamente do gastronómico, foi ter acertado no conceito. Nada do que parecia básico, nem a decoração pobre, nem a comida de pobre (nem a factura de pobre, pelo menos na altura), era acaso ou falta de empenho.” José Vila morreu esta terça-feira, aos 77 anos. José Júdice, jornalista, era seu amigo de infância.

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José Vila era um dos proprietários da Adega Vila Lisa, na Mexilhoeira Grande, Portimão Vasco Célio

Num Verão já muito distante, no início dos anos oitenta, levei o meu amigo Hernâni Santos, então director do Tal&Qual, a jantar a uma tasca que havia na minha aldeia, cem metros abaixo de casa. E o que é que se come, perguntou o Hernâni, a salivar de antecipação com um robalo grelhado ou uma cataplana. Aquilo que, na altura - e ainda hoje - passa por ser a comida do Algarve.

Eh pá, nada disso, comes o que te puserem na mesa. Uma mesa corrida com bancos de pau, as paredes cobertas de estantes com garrafas deitadas, o chão de cimento afagado, a cozinha improvisada a um canto com a dona Luísa a mexer panelas. O básico. E, sem pedir ou esperar, para cima da mesa começaram a chegar as ditas panelas e os tachos, numa sucessão interminável de arroz de conquilhas, sopa de lingueirão, chambão com massa, pernil no forno, amêijoas de Alvor, lulas recheadas, raia de alhada e, já com os estômagos a desafiar todas as leis da física e todas as teorias dos nutricionistas (então, felizmente, ainda na fase de start-up), a sopa de rabo de boi. E os doces de figo. E o ramisco de Colares à discrição. E o café da cafeteira de lata. E os copinhos de medronho (também à discrição). E a conta, tão saborosa e surpreendente como tudo o que estava para trás. Não posso garantir quantos panelões, e garrafas, foram consumidos nessa noite. O que posso garantir é que na noite seguinte, e na outra, e na outra, e em todas as restantes, o Hernâni não pensava noutra coisa. E escreveu para o Tal&Qual a primeira do que viria a ser uma imensa biblioteca de crónicas gastronómicas onde a palavra-chave era inevitavelmente o oásis. E de vez em quando era o paraíso, ou a Meca, mas está-se a ver a ideia.

O grande talento do Vila, além obviamente do gastronómico, foi ter acertado no conceito. Nada do que parecia básico, nem a decoração pobre, nem a comida de pobre (nem a factura de pobre, pelo menos na altura), era acaso ou falta de empenho. Nem as mesas corridas, nem os bancos corridos de pau, onde uma pessoa se sentava depois de muitos com-licenças para chegar ao lugar que o Vila ou o Lisa lhe indicavam, resignado às cotoveladas do desconhecido do lado - ou conhecido, uma noite levei muitas do Serge Gainsbourg - cada vez que usava o garfo. Nem, sobretudo, a comida. O que o Vila dava a comer era a comida da sua terra, a comida dos algarvios que comiam em casa e não tinham dinheiro para ir a restaurantes, a comida feita com os produtos da terra e da horta e com as carnes e os peixes mais baratos. Até o pouco marisco que servia, como o lingueirão, as conquilhas e as amêijoas eram de rabisco. Numa altura em que se apanhavam com o pé na praia ou metendo os dedos nos lamaçais da ria de Alvor.

A simplicidade, mesmo trabalhada, foi o segredo do sucesso do Vila. E como nada sucede como o sucesso, em pouco tempo a tasca para os amigos e amigos dos amigos passou a ser roteiro obrigatório de turistas e veraneantes, com bichas à porta. O que perdeu em espontaneidade e informalidade ganhou o Vila, e o Lisa, que viram recompensada a sua ideia aparentemente tão simples. Servir comida algarvia, no Algarve. Não que a comida algarvia fosse desconhecida. Em muitas tascas e restaurantes baratos também se servia - mas para algarvios. E já estava tudo, de resto, na Maria de Lourdes Modesto. O que faltava era divulgar esse património popular, e transferi-lo para dentro dos estômagos dos de fora.

Um desses de fora, a quem o Vila deu a provar a comida do povo algarvio, foi Álvaro Cunhal. Porque o Vila, além de cozinheiro, pintor e bon vivant, era comunista desde sempre. Eu, e os outros adolescentes da aldeia, chamávamos-lhe o Pancho Villa - e não só pela sua parecença física com o revolucionário mexicano. O Vila, mais velho, “era” o revolucionário - enérgico, desbocado, provocador, irónico, desrespeitador de Deus, Pátria, Autoridade, e sobretudo apreciador das coisas boas da vida. Mesmo nos últimos anos, já com uma doença terrível, não abdicava dos seus prazeres a troco do prolongamento de uma vida que não lhe desse gosto viver. Como ele dizia da sua militância comunista, sou militante, sim, e pago as cotas, mas é para não ter que ir lá a reuniões.     

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