José Vilae a Mexilhoeira Grande

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Não fosse um restaurante sem placa e poucos saberiam onde é a Mexilhoeira Grande. José Vila, restaurador e pintor, desfia histórias à mesa da Adega Vila Lisa, uma catedral da gastronomia onde o único pecado é resistir aos sabores da cozinha algarvia. Sandra Nobre (texto) e Vasco Célio (fotos)

O cheiro varre a sala de refeições de ponta a ponta. Está vazia a esta hora. Meio da tarde de um dia tórrido, como se quer o Algarve mesmo quando já não se está de férias. Ouve-se o sibilar da panela de pressão. "Estou a adiantar o polvo e o pernil", esclarece José Vila, enquanto anota os tempos de cozedura. Toca o telefone - incansável toda a tarde - para mais uma reserva. É o próprio quem atende e faz a marcação. Está sentado à janela, charuto apagado sobre a mesa, um gin tónico com gelo a acompanhar. Por instantes faz lembrar Ernest Hemingway diante de um mojito, na Bodeguita del Medio em Havana, Cuba. O mesmo calor tropical, a mesma barba grisalha, o mesmo porte. E não há quem não reconheça Vila, algarvio dos quatro costados - o mesmo não se pode dizer de José Duarte Martins da Silva, que adoptou o nome artístico Vila nos anos 1960, numa homenagem ao poeta colombiano Vargas Vila (1860-1933), que tantas vezes declamava.

Como uma gaivota a rondar o barco que chega da faina, a memória faz um voo rasante pela infância sem se perder em sentimentalismos. "Quando era puto não havia transportes e ficava na ria de Alvor. Foi onde aprendi a nadar. Há anos que deixei de ir para lá. Hoje é um braço de rio, não tem praia e o acesso não é bom". Depois, veio o tempo das viagens de comboio - "que parava ali" - até à Meia-Praia, em Lagos, a da canção de Zeca Afonso, que mais tarde há-de chamar para a mesa.

Vagueou do barlavento ao sotavento. "Criei ligação a várias pessoas, conheci diferentes maneiras de ser, vivi à beira-mar com os cuícos em Monte Gordo, aprendi muito", orgulha-se. Dessa gente itinerante e simples que diariamente se dedicava ao milagre da multiplicação guarda imagens que ficaram para sempre. "Lembro-me de uma vez, ingenuamente, perguntar por que razão punham água no azeite. Não tinham dinheiro e diluíam-no assim para render mais. Isso tem-me perseguido, foi uma aprendizagem."

Nunca foi pescador, mas gostava de seguir nos barcos. Era bem recebido e sentia-se em casa. "As pessoas do mar são mais afectivas, mais fraternas, menos desconfiadas. Sempre senti isso. Deixavam-me entrar nas suas vidas e acompanhá-los."

Vila foi sempre mais crescido do que a sua idade. "Eu era puto e os mais velhos deixavam-me andar com eles. A primeira vez que dormi fora de casa tinha 12 anos, a minha mãe ia ficando louca, ligou para hospital, bombeiros, polícia." Gostava de soltar amarras e andar à solta. Quando a mãe lhe faltou vadiava sem tempo. Um dia, ao chegar a casa, tinha um bilhete do pai na mesa de cabeceira. Dizia: "Vê lá se um dia chegas a horas para te ver." Cruzavam-se pouco. Ele estendia as noitadas até ficar a ver o nascer do sol. Sempre preencheu a vida com prazeres. "Era aventureiro, mas não rebelde."

As marcas do areal de Monte Gordo, da lida dos cuícos que depois se mudaram para a Meia-Praia e começaram aí de novo a labuta, a violência dos céus rasgados que embrulhavam os botes noite dentro, reproduziu-as nas telas que pinta desde a adolescência, sem saber muito bem como começou. "Devia ter uns 13 anos e acho que foi muito por culpa do Benjamim, mais velho aí uns três anos, que era pintor, de Marim, Olhão, e bebíamos uns copos juntos. Talvez tivesse sido daí, nem sei bem." E vai buscar para a conversa alguns dos quadros que enchem as paredes toscas da Adega Vila Lisa. "Não o faço intencionalmente, mas as referências estão cá." Sob a geometria da cor desenha com o dedo a seco as dunas, o mar, a noite, os "índios". "Isto podia ser o erguer tijolos da canção do Zeca"... "Eram mulheres e crianças/ Cada um com o seu tijolo/ Isto aqui era uma orquestra/ Quem diz o contrário é tolo/ E se a má língua não cessa/ Eu daqui vivo não saia/ Pois nada apaga a nobreza/ Dos índios da Meia-Praia".

O altar da mesa

Não fosse o Vila Lisa e poucos saberiam dizer onde fica a Mexilhoeira Grande. Foi este restaurante sem placa, apenas com as paredes caiadas, debruadas a azul e as portadas amarelas, que pôs a pequena freguesia do concelho de Portimão no mapa. Antes "só o padre e quem cá vivia" sabia onde era o sítio, graceja. Sente orgulho, claro, mas não é homem de vaidades. "O António Tavares-Teles disse que "o Vila Lisa é a capital do Algarve". É uma responsabilidade, mas não penso nisso."

O movimento que o restaurante trouxe à terra acompanhou o êxodo de quem ali cresceu. "Sobram poucos residentes", lamenta. Também não há muito para ver. Vila gosta de ir até ao adro da igreja "com vista sobre Alvor, a ria, o mar". Tirando isso, "está desertificada e velha", a terra.

Percorre os mesmos sítios diariamente, no mercado de Lagos em bancas de fornecedores certos. E, em cada vez mais raros momentos, entrega-se à embriaguez dos arredores: contemplar o sol do meio-dia, no Outono ou na Primavera, "quando está mais fresco e há menos gente", na Meia-Praia, e daí, de costas viradas para a baía de Lagos, sobe com o olhar a encosta da serra de Monchique, que também espreita da janela do seu atelier. "Mar e serra, a combinação perfeita." Mais para o sotavento, gosta de percorrer a ria Formosa, Cacela Velha. Os petiscos deixa-os nas mãos de velhos comparsas, o amigo Gigi e o Luciano, para lá da fronteira, em Ayamonte.

É dentro de casa que moram as suas paisagens, penduradas sobre as mesas corridas do restaurante, espelho da forma como encara a cozinha: um punhado de amigos, pratos feitos com o que tem à mão e conversas a marinar sem pressa. "Não há protocolo. A mesa é tão importante como a comida." Interrompe para verificar a panela que continua a sibilar no fogão, enquanto joga o olho ao relógio para não deixar passar o ponto de cozedura. Acende o charuto, "um prazer de longa data" - deixou de fumar em 1983, mas os cubanos continuaram a ser fiéis companheiros de ócio.

Tem gosto apurado. Os sabores dos pratos cozinhados pela mãe, Ana, estão sempre consigo. Recorda os almoços domingueiros, "os pratos sempre melhorados" e os cheiros. Sempre com gente a aparecer à hora da refeição. A lembrança da cabidela ainda lhe faz água na boca. "Cheirava bem. Quem passava na rua dizia "A Antinha - que era como chamavam a minha mãe - já está a fazer o jantar"." Procura a excelência na simplicidade de umas favas à algarvia com peixe frito ou de uma abrótea cozida com arroz, só não tem grande apetite. "Como tanto como uma criança."

As cores que não vê

A pintura sempre andou de mão dada com a cozinha. Pintava e vendia nas tabernas e com o que rendia "pagava uma rodada à malta". Por vezes oferecia algumas telas "com raiva", mas "o vazio que ficava era um estímulo para continuar a trabalhar". Outras pinturas passaram a fazer parte da sua vida. "É uma relação de amor/ódio."

Admira Picasso, Miró, Kandinsky. António Sena foi seu professor no Ar.Co e amigo, "uma referência". O expressionismo e a linguagem geométrica são a sua praia. Depois de ter corrido o Algarve de lés-a-lés, foi mobilizado para África e, no regresso, ficou por Lisboa até ter a sua dose de boémias, tertúlias e noitadas. "Um dia disse para mim que já chegava, estava cansado daquela vida." Mudou-se para Sintra - outro lugar que o apaixona, "a Várzea, o Penedo, as praias" -, mas continuou no mesmo registo.

Em 1984, teve saudades e voltou à Mexilhoeira Grande "para pintar mais". As exposições sucederam-se, abriu horizontes. "Foi uma viragem na minha vida, que até aí parecia estar às escuras." Na mesma altura, aproveitou um antigo armazém de José Lisa e juntos começaram o negócio, com a única preocupação de estar entre amigos. "Pensámos numa casa com copos ao fim da tarde. E assim fizemos. Fazia-se as compras de manhã, ia para a praia a seguir e depois cozinhava." Continuou sempre a pintar.

A receita mantém-se ao fim de tantos anos. Dorme pouco, gosta de se levantar com a alvorada, de pintar de manhã, dorme a sesta depois do almoço, vem para o restaurante a seguir até fechar. "Raro é o dia em que não aparece gente conhecida."Está a noite feita.

São dois mundos: as animadas reuniões em volta da mesa e o silêncio do seu atelier, onde apenas deixa entrar a música, jazz ou clássica, consoante o estado de espírito. Mas há pouco da luz do Algarve, aquém e além mar, nas suas telas. "Sempre pintei muito a preto e branco", desculpa-se, "tenho sensibilidade para a cor, mas não as distingo muito bem, sou daltónico." É como se lhe faltasse um ingrediente para finalizar o prato e é aí que entra a alquimia de saber misturar os sabores - ele joga com as cores em que se sente seguro.

Continuamos a desfiar memórias à mesa, esse lugar de culto onde soma fiéis religiosamente. "À mesa ninguém envelheceu!", escreve a certa altura Vila no livro Coisas da Terra e do Mar - Sabores da Cozinha Algarvia. Tem 68 anos. Muitos dos que com ele partilhavam estes momentos já não estão e emociona-se quando surgem inesperadamente a meio de uma história. David Lopes Ramos, crítico gastronómico da Fugas, é dos que mais falta lhe faz. O jornalista escreveu: "Deixem-me que vos diga: tenho grande orgulho na amizade do Vila." Um gin tónico agora cai bem. Fazem-lhe falta esses amigos ausentes, porque a mesa quer-se cheia. Mas é pragmático: "A vida é assim e não sou nostálgico. Apetece-me mais o amanhã para poder fazer outras coisas."

Feitas as contas, José Vila é um bon vivant, homem de prazeres, paixões, entregas e celebrações. A mulher, Dau, a quem encantou com a prosa de Sartre, Simone de Beauvoir, Kafka e Camus, diz dele em Vila Trajectos - Cinco Décadas de Encontros: "Talvez tenha tanto de anjo como de demónio. (...) Um homem sem limites".

O artista que faz lembrar Hemingway está sentado junto à janela, a meio da tarde de um dia quente, com o sol a espreitar entre as portadas, donde avista o homem que dormita na esplanada em frente, o charuto a meio fumado, o copo já vazio, a música a varrer a casa, ar sereno. Uma certeza: "Gosto da minha vida."

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