Os problemas que o novo Pacto para as Migrações e Asilo deixa por resolver

“Não há vontade política” para acolher toda a gente que chega à UE, diz Paulo Rangel, e “isso é intransponível”. Falta “uma estratégia de inclusão e uma resposta humanitária”, sublinha Marisa Matias.

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O campo de Moria, na ilha grega de Lesbos, tinha 12 mil pessoas quando ardeu, em Setembro Reuters/ELIAS MARCOU

O novo Pacto para as Migrações e Asilo da União Europeia, apresentado em Setembro em Bruxelas, é a “última oportunidade” para os 27 assumirem as suas responsabilidades no acolhimento de pessoas em fuga de situações de guerra ou miséria, disse o alto comissário das Nações Unidas para os Refugiados, Filippo Grandi, numa passagem recente por Lisboa para deixar uma mensagem à presidência portuguesa. Mas será esse pacto a solução para a crise que já foi chamada de solidariedade e que continua sem fim à vista?

Cinco anos depois do acordo entre a UE e a Turquia para travar o fluxo de refugiados e migrantes, assinado em Março de 2016, a Síria continua a ser o principal país de origem dos pedidos de asilo nos 27, com 74 mil pedidos em 2019. Desde a repressão à revolta de 2011, a maioria dos sírios, mais de 13 milhões, tornou-se refugiado ou deslocado dentro do seu país: a conferência de Bruxelas sobre a Síria, o quinto fórum de dadores, que se realiza esta segunda e terça-feira, ajudará a clarificar a dimensão das necessidades.

Os sírios – e não são os únicos – que conseguem chegar à Europa não têm um país para onde possam voltar. Uma realidade que parece chocar com o novo Pacto para as Migrações e Asilo, um documento que põe a tónica nos repatriamentos, procurando assim contornar a recusa de vários Estados-membros em acolher pessoas.

A proposta da Comissão Europeia passa por um “mecanismo de solidariedade” obrigatório e permanente, que pode ser accionado em situações de ruptura no sistema de acolhimento de um dado país, ao mesmo tempo que serve para pôr em prática um esquema que permite aos países optar entre receber os candidatos à protecção internacional e “patrocinar” o seu repatriamento.

Marisa Matias, eurodeputada do Bloco de Esquerda, membro do Grupo da Esquerda no Parlamento Europeu, vê neste novo pacto “uma desilusão”, precisamente pela “obsessão com o retorno que percorre todo o documento”, fazendo desta “uma ferramenta como as outras” e não a “excepção” que devia ser. Isso, e “o facto de não trabalhar a fundo a revisão de Dublin”, resultado, diz, da influência dos países do Grupo de Visegrado – Polónia, República Checa, Eslováquia e Hungria. “A influência destes países traduz-se a ponto de não estarmos a rever o [regulamento de] Dublin [como é conhecido o sistema europeu de asilo] e estarmos a adoptar em vez disso esta dita ‘solidariedade flexível’”, acusa.

“A outra questão que falha, e muito, é que nós já percebemos que temos de ter uma estratégia de inclusão e uma resposta humanitária e nem uma nem outras são recuperadas” pelo pacto, afirma. “O que a UE fez nos últimos anos foi inviabilizar quaisquer programas e iniciativas que tenham a ver, por exemplo, com o resgate e com a ajuda humanitária, e não repõe.” Antes pelo contrário: actualmente, afirmou o Conselho da Europa num relatório deste mês, há cada vez mais naufrágios ignorados no Mediterrâneo, com os Estados a não salvarem, nem deixarem trabalhar as organizações não-governamentais que se dedicam ao resgate de embarcações em risco.

“Razões lamentáveis”

Considerando que o repatriamento pode ser “uma solução” e é “um dos pilares da política de migrações”, o eurodeputado Paulo Rangel nota que não há forma de obrigar os países a acolher pessoas. “É um problema que temos de assumir, há Estados que por várias razões não querem em caso nenhum receber, incluindo aqueles que recusam por razões lamentáveis que temos de denunciar, em particular a Hungria e a Polónia, que não têm de facto excesso de imigrantes”, afirma.

“Não há uma solução mágica. E uma coisa é certa, nós não conseguimos acolher toda a gente, porque a certa altura será materialmente impossível e porque não há vontade política, isso é intransponível”, sublinha Rangel, eurodeputado do PSD, vice-presidente do Partido Popular Europeu e do grupo parlamentar do PPE no Parlamento Europeu. Sabendo isso, considera que “ter Estados disponíveis para serem os executores dessa política do retorno, ou pelo menos assegurarem os recursos logísticos, como aviões, pode ser uma solução”.

Tanto Marisa Matias como Paulo Rangel defendem que a par de cumprir as suas obrigações face aos requerentes de asilo, a UE devia ter “acima de tudo uma política de migrações”. Uma estratégia “independentemente dos refugiados” pensada para quem quer viver e trabalhar na Europa: “Algumas destas pessoas até serão refugiadas, não no sentido de alguém perseguido porque há uma guerra, por razões religiosas ou por causa das suas orientações sexuais, mas no sentido económico, por estarem na miséria, e fogem para não morrer à fome, arriscando uma morte no caminho”, afirma o eurodeputado do PSD.

“Na linha da frente”

E, se Paulo Rangel assume uma posição que não é partilhada por todos na sua família política, Marisa Matias sublinha, por outro lado, que muitas conclusões erradas começam com “a ideia feita, no espaço europeu, de que a maior parte das pessoas que estão na UE de forma irregular estão a abusar do nosso sistema e, portanto, necessitam de ser repatriadas”.

A eurodeputada diz que “se dúvidas houvesse, percebeu-se isso com o que se passou agora durante a pandemia, quando vimos a quantidade de imigrantes que não têm papéis e que são fundamentais, estando muitos até na linha da frente”, como no caso dos países que durante os períodos de maior confinamento ficaram “com as culturas nos terrenos por apanhar, o que levou algumas organizações no sector agrícola e da indústria agro-pecuária a pedir excepções” para estas pessoas.

E se, no seu conjunto, os países da UE não têm esta perspectiva mais global, também não conseguem coordenar-se para pelo menos receber com dignidade aqueles que chegam e esperam pela decisão dos pedidos de asilo. Os países que são as principais portas de entrada, Grécia, Itália, Espanha, Malta e Chipre, e que mantém nos seus territórios dezenas de milhares de pessoas, voltaram a pedir a semana passada solidariedade dos seus parceiros na partilha do esforço.

“No seu formato actual, o pacto não dá garantias suficientes aos Estados-membros da linha da frente”, afirmaram os ministros do Interior e das Migrações destes países do Sul numa declaração conjunta depois de uma reunião em Atenas.

As condições dos campos

A permanência de milhares de pessoas em campos de refugiados sem condições é um ponto onde Paulo Rangel considera que “a UE falha, e muito”. “Isso é que me parece terrível – são as condições em que essas pessoas estão”, diz. “Só visitando é que se compreende, porque realmente uma pessoa sai dali a pensar que há qualquer coisa que está muito mal.”

“Aí é que eu acho que nós tínhamos de investir muito”, defende o eurodeputado, notando que o novo “mecanismo de solidariedade” também podia ser usado desta forma. “É outra coisa em que esses Estados, que não querem acolher, poderiam investir – em sítios onde as pessoas pudessem ficar em dignidade enquanto esperam por saber o que lhes vai acontecer, mesmo as pessoas que têm de retornar”, afirma.

Lembrando a sua última visita à ilha grega de Lesbos, onde fica Moria, o pior campo de refugiados da Europa, depois do incêndio de Setembro que o reduziu a cinzas, Marisa Matias lembra que “há muitas pessoas a quem o retorno é colocado como a única solução, antes sequer de que o seu pedido de asilo seja analisado”. E pensando nos sírios, que não podem regressar a casa, defende que o principal investimento da União no seu futuro deveria passar precisamente por acolher e integrar esta população.

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