À boleia do PAN, PSD quer obrigar a declarar pertença a qualquer associação — do bairro à maçonaria

Regra para os políticos e altos cargos públicos levanta dúvidas entre os partidos, com especiais críticas vindas do PS: Isabel Moreira rejeita o “mapeamento” da vida dos deputados.

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Palácio Maçónico, sede do GOL Nuno Ferreira Santos

Aproveitando o caminho trilhado pelo PAN, que propõe que os políticos e altos cargos públicos declarem, de forma facultativa, se pertencem a associações de carácter “discreto” ou secreto como a maçonaria ou a Opus Dei, o PSD propõe agora que os políticos e altos cargos públicos passem obrigatoriamente a declarar a “filiação, participação ou desempenho de quaisquer funções em quaisquer entidades de natureza associativa exercidas nos últimos três anos ou a exercer cumulativamente com o mandato”.

Esta regra foi defendida pelos sociais-democratas nesta terça-feira na Comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados e, embora tenha sido apresentada como uma alteração ao projecto de lei do PAN, na verdade acaba por substituí-lo. O PSD quer, assim, alterar o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos que entrou em vigor em Setembro de 2019, com a nova legislatura, e que resultou dos trabalhos da Comissão Eventual para o Reforço da Transparência.

 A declaração de pertença a estas entidades é feita na declaração única de rendimentos património, interesses, incompatibilidades e impedimentos que os políticos e altos cargos públicos têm que preencher no início, no final e três anos depois do fim do mandato (ou saída do cargo) ou sempre que houver alterações relevantes durante o exercício do cargo.

A proposta do PSD motivou uma discussão de uma hora na Comissão de Transparência, mas sem que os deputados tenham chegado a qualquer decisão que não fosse o adiamento da votação das duas propostas que estão em cima da mesa. Até porque, admitiram quase todos os partidos, esta é uma questão em que é muito difícil definir os limites.

“Se é importante a pertença a associações, ou é obrigatório declarar ou não faz sentido existir [como facultativo]”, defendeu o deputado do PSD André Coelho Lima argumentando com a necessidade de “transparência democrática”. “Deve ser uma obrigação declarativa e não uma faculdade declarativa.” E além de ser obrigatória a declaração, deve sê-lo em relação a todas as entidades, “sem discriminar nenhuma”, seja uma associação recreativa de bairro, o clube desportivo, a maçonaria ou a Opus Dei, vincou o vice-presidente social-democrata, ainda que admitindo que isso possa até ser difícil para quem faz a declaração. “Há aqui uma lógica de quem não deve não teme”, acrescentou, defendendo a necessidade de os deputados serem “coerentes e criteriosos” na definição desta obrigação.

As maiores críticas à proposta do PSD vieram do PS. A deputada Isabel Moreira afirmou que a pretensão facultativa do PAN já está hoje em vigor e considerou que a imposição do PSD de se declarar todas as associações é “desproporcional”. Afirmou que se um deputado tiver uma doença e pertencer a uma associação que se dedica a essa doença e tiver de o declarar “vê a sua vida privada exposta"; e deu o seu exemplo de ser sócia da Ilga e da Associação das Mulheres Juristas. “O que isso permitiria fazer em termos obrigatórios e desproporcionais era mapear a vida de um deputado, desde as associações culturais e desportivas da terriola, mini-clubes de futebol, voleibol e andebol ou associações de que faz parte por questões éticas ou problemas de saúde seus ou de familiares. E isso sem haver qualquer incompatibilidade para a execução do seu mandato.”

Isabel Moreira considerou que se trata até de uma violação de princípios constitucionais como a liberdade de associação ou liberdade de culto — por se ter que declarar que se é da Opus Dei, por exemplo e acusou o PSD de querer saber sobre todas as associações “e de caminho apanhar os deputados que pertencem à maçonaria e à Opus Dei”. A socialista defendeu que o actual regime facultativo de declaração é suficiente.

Na resposta, André Coelho Lima disparou contra os socialistas por proporem a lei do lobbying e o registo de todas as pessoas e empresas e contactos com deputados. “A lei do lobbying é o maior mapeamento da vida de um deputado que eu já vi. Ao lado disto, a declaração obrigatória [de pertença a associações] é uma brincadeira.” E foi buscar o exemplo do pai da primeira lei de bases da saúde, António Arnaut, que foi grão-mestre do Grande Oriente Lusitano e que assumiu, contou o deputado do PSD, que o texto da lei de bases foi alvo de reflexão na sua loja maçónica e só depois foi enviada ao Parlamento. André Coelho Lima afirmou-se “chocado” por saber que há questões alvo de interferência por desconhecidos e que “influenciam o que é discutido no órgão da democracia”, sendo “importante fazer o escrutínio” dessas situações.

O comunista João Oliveira concordou com o objectivo do PAN de “garantir maior transparência na identificação de situações que possam ser incompatibilidades ou impedimentos do mandato” mas considerou que a solução da declaração facultativa “não é muito sólida”, ao passo que a obrigatoriedade do PSD levanta “dúvidas sobre o universo de situações” que abarca. O deputado do PCP afirmou ser um excesso saber a filiação clubística de um deputado e quis saber se seria obrigatório declarar pertencer a uma comunidade islâmica, católica ou a um sindicato.

André Silva, do PAN, defendeu que “ninguém se deve envergonhar das associações a que pertence e essa informação deve ser clara para os eleitores” e que “todas as ligações dos eleitos devem ser escrutinadas e transparentes”. “Quem não tem condições para assumir que pertence a uma associação secreta ou discreta não tem condições para exercer o mandato de deputado ou de alto cargo público.”

Já o Bloco, se considerava que a regra facultativa do PAN não acrescentava nada ao regime em vigor, admite que a proposta do PSD tem “interesse”, mas é preciso que “sirva para identificar potenciais conflitos de interesses, incompatibilidades e impedimentos”. José Manuel Pureza alinhou na ideia de que os deputados já têm que exibir uma dimensão pessoal da sua vida ao serem obrigados a “mostrar o património” e rendimentos. “É um princípio de transparência que deve ser alargado a outras situações que possam conflituar com a autonomia do exercício livre do mandato do cargo político ou público. (...) Não há risco de mapeamento, mas temos que ser cautelosos.”

O centrista João Almeida concordou que se está a “entrar num caminho muito difícil de restringir” e num “processo arriscado”. Mas admitiu que o CDS também “não consegue concretizar o princípio de transparência que também defende” e disse ser preciso que se defina qual o bem jurídico que se quer proteger quando se obriga ao dever declarativo de pertença a toda e qualquer associação.

Sem chegarem a acordo, os deputados vão pedir um novo prazo de 60 dias para debater o assunto, depois de a proposta do PAN ter baixado à comissão sem votação no plenário. 

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