Depois das vacinas, as bolsas arrefecem mas os laboratórios ainda brilham

Tal como sucede na Pfizer, alguns executivos da Moderna têm vindo a vender acções a preços inflacionados pelos anúncios de resultados preliminares.

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LUSA/JIJI PRESS

Um dos mais respeitados investidores em bolsa, Warren Buffett, trocou a banca pelas farmacêuticas. O fundador da Berkshire Hathaway comprou 5700 milhões de dólares em acções de quatro empresas daquela área, mostrando que também ele foi contagiado pela euforia bolsista que se seguiu a uma semana com dois anúncios impactantes sobre vacinas contra a covid.

Buffett comprou, entre outras, acções na Pfizer, uma das empresas cujos resultados preliminares geraram confiança mundial na luta antipandemia. E a conduta do “oráculo de Omaha” simboliza bem o brilho momentâneo desse sector da saúde, onde Pfizer, Biontech e Moderna mais se destacam ao mesmo ritmo a que se avolumam perguntas sobre potenciais conflitos de interesse envolvendo gestores dessas empresas.

Alguns executivos têm vendido acções a preços inflacionados desde que o desenvolvimento de vacinas deu origem a uma sucessão de anúncios. E como apontam algumas análises, isso deve-se a especulação bolsista assente em comunicados que não são garantia de que o mundo encontrou efectivamente armas contra a pandemia.  

O anúncio da Moderna, na segunda-feira, de 94,5% de eficácia nos testes da vacina contra a covid-19 que está a desenvolver, gerou uma euforia nos mercados mundiais que, nesta terça-feira parecem ter arrefecido.

As principais bolsas dos dois lados do Atlântico registam recuos ligeiros nos índices de referência, incluindo o PSI 20 em Lisboa (-1,47% às 16h e -1,37% no fecho, com 15 das 17 cotadas a perder), mas com a excepção de Paris (+0,07%) e Milão (+0,58%).

Na Ásia, o destaque vai para o Nikkei, na bolsa de Tóquio, que ultrapassou a barreira dos 26 mil pontos pela primeira vez em 29 anos, fechando o dia a ganhar 0,42%. O índice Nikkei reflecte a média não ponderada dos 225 principais valores da bolsa de Tóquio, que a 9 de Novembro já tinha registado o melhor desempenho desde 1991.

Nos EUA, tanto o S&P 500 (-0,4%) como o Dow Jones industrial (-0,59%) escorregaram para terreno negativo na abertura da bolsa, algo que foi atribuído dados negativos do retalho e ao crescimento no número de infecções no país.

Isto depois de um dia de recordes, na segunda-feira, que marcou um pico nesta tendência  seguida por investidores como Buffett (que é uma das estrelas do S&P 500), de aposta no sector farmacêutico em detrimento de outros como a banca, ou até das tecnológicas que, durante a pandemia, têm estado a puxar a negociação para cima, quase ao ponto de sobreaquecimento.

O próprio Nasdaq só não recuou mais nesta terça-feira devido à extraordinária valorização da Tesla, que ganhava 12%, depois do anúncio da entrada deste fabricante de carros eléctricos no índice S&P 500.

Biotecnologia em alta

Portanto, em Wall Street, neste momento, quem distribui as cartas é a biotecnologia. Buffett comprou 30 milhões de acções da Bristol-Myers Squibb, 21,3 milhões da AbbVie, 22,4 milhões da Merck (que também trabalha numa vacina contra a covid-19) e 3,7 milhões de acções da Pfizer, cujas acções causaram furor na semana passada, quando o consórcio que tem com a Bointech anunciou uma eficácia acima de 90% da vacina que está na fase de testes.

Em bom rigor, o exuberante comportamento das acções das farmacêuticas assentam em meros comunicados de imprensa que geraram uma expectativa global de que, afinal, pode ser verdade que tudo acabará bem. Ao influenciar de tal forma as esperanças, com base em resultados provisórios que parecem aproximar o mundo de uma solução sem garantir, porém, que esta chega em breve (ou sequer se chegará alguma vez), influenciou também o valor de mercado de empresas que, até há poucos meses, se pautavam por uma presença discreta em bolsa.

As acções da Moderna, sediada em Cambridge, no Massachusetts (costa Leste dos EUA), valiam 19,23 dólares no início de 2020. A partir do início de Março até Julho entrou numa espiral de valorização que multiplicou o valor acção por quase cinco vezes. E ontem tocou o valor mais alto de sempre, acima dos 100 dólares pela manhã, quando surgiu o mais recente anúncio, fechando o melhor dia de sempre desde a admissão na bolsa em 2018 nos 97,95 dólares por acção.

A valorização da Moderna foi de quase 50% no último mês. E o CEO da empresa é um dos que aproveitaram o preço em alta, tendo vendido mais de dez mil acções a 13 de Novembro, ou seja três dias antes do anúncio. Um negócio que lhe permitiu encaixar 1,8 milhões de dólares. Outros executivos da mesma empresa também estão a desfazer-se de acções desde Fevereiro, com maior intensidade desde Maio, como o chairman e o médico-chefe.

Na Pfizer, o CEO Albert Bourla encaixou quase cinco milhões de dólares com a venda de acções no mesmo dia em que a empresa anunciou que a vacina em testes tinha uma eficácia superior a 90%.

Conflitos éticos? O caso Gilead

Casos como estes levantam dúvidas sobre potenciais conflitos éticos. Mas também há grandes laboratórios que nesta altura perderam algum brilho.

É o caso da Gilead, que transacciona neste momento a um preço mais baixo do que no início de 2020, depois de ter subido bastante quando pôs no mercado o remdesivir, um medicamento usado no tratamento das infecções por covid-19.

No caso da Gilead, o que incomoda certos analistas é o facto de a empresa ter conseguido fechar negócios de fornecimento de remdesivir com EUA e a União Europeia antes mesmo de a eficácia desse medicamento ter sido questionada pela própria Organização Mundial de Saúde.

Já se sabia que o remdesivir não salva vidas, mas assumia-se que reduzia o tempo de internamento. Porém, em Outubro emergiram resultados, confirmados por diversos estudos, que lançam fundadas suspeitas sobre a eficácia do remdesivir. Afinal, o medicamento pode não trazer benefício algum.

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