Nuremberga vai restaurar o cenário dos comícios nazis para que as pedras falem e a história não se repita

Projecto para a preservação do complexo do Parque do Zeppelin e do Centro de Congressos do Partido Nacional-Socialista vai custar 85 milhões de euros. Vinte anos de debate depois ainda há quem o conteste.

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Um comício em Nuremberga em 1936 DR

Quase sempre que se fala sobre a forma como o património e os museus lidam ou deviam lidar com períodos particularmente sensíveis, negros, da história de um país, o caso da Alemanha vem à conversa. O papel que teve na Segunda Guerra Mundial, e em particular o extermínio de milhões de pessoas determinado por Adolf Hitler e organizado pela cúpula militar do III Reich, e a maneira como o país tem vindo a confrontar-se com esse passado e a reflectir sobre ele nos últimos 75 anos são referências para o debate. 

Nuremberga, cidade-epicentro da Alemanha nazi que procurou reinventar-se depois de intensamente bombardeada em 1945, sem nunca procurar ocultar o lugar que ocupou na ascendência e fortalecimento do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, de Hitler, toma, uma vez mais, o centro da discussão em torno das condições de preservação de uma memória que ensombra o país e o mundo, com todos os dilemas éticos que ela implica.

Depois de 20 anos de debate, esta cidade da Baviera anunciou que vão ser gastos 85 milhões de euros em projectos de conservação dos espaços ligados ao nazismo, em particular o local onde, entre 1933 e 1938, Hitler fez os seus discursos racistas perante centenas de milhares de pessoas, noticiam as imprensas alemã e francesa.

“Foi aqui que tudo começou: a destruição, a exclusão e, por fim, a Shoah”, disse a responsável pela cultura da cidade, Julia Lehner, aqui citada pela Agência France Presse (AFP), lembrando que foi Nuremberga o coração da propaganda nazi e que foi lá que, em 1935, foram promulgadas as leis contra os judeus.

Recorde-se que Hitler, chanceler entre 1933 e 1945, escolheu Nuremberga como a Cidade dos Congressos do Partido Nacional-Socialista, tendo planeado ali construir um imenso complexo, cujo desenho entregou ao principal arquitecto do III Reich, Albert Speer, capaz de transmitir os ideais de grandeza da sua Alemanha. 

A “monumentalidade” destas estruturas tinha por objectivo “demonstrar a superioridade da ideologia nazi”, disse ao diário francês Le Figaro o historiador Wolfgang Benz.

Desse complexo, cuja construção não ficou completa, destacam-se o Centro de Congressos, inacabado, onde está hoje um centro de documentação que tem em permanência desde 1984 Fascínio e Violência, uma exposição sobre os horrores do nazismo e de outros totalitarismos, e a tristemente célebre tribuna do Parque Zeppelin, palco das grandes paradas militares anuais — registadas em filmes que reflectem uma estética muito própria, com a assinatura de Leni Riefenstahl, há décadas objecto de estudo —, instrumentos de encenação do regime que tinham como ponto alto o discurso do Führer, feito a partir deste “púlpito” inspirado numa das jóias do mundo clássico, o altar de Pérgamo. 

Intervir neste cenário de paradas nazis, entretanto aberto à prática desportiva e a outras actividades de lazer, mas também a eventos musicais (lembra o Figaro que até Bob Dylan tocou ali em 1978), não é, naturalmente consensual, mas tornou-se necessário, argumenta o executivo que governa esta cidade da Baviera.

Construção com significado

Apesar de haver o risco de aproveitamento deste espaço monumental por neonazis e outros grupos de extrema-direita numa Alemanha em que eles parecem vir a ganhar força, assim como o anti-semitismo, é urgente travar a degradação daquelas estruturas, em parte já fechadas por perigo de derrocada. 

Contestada por aqueles que preferiam que este recinto com 11km2 se degradasse de forma controlada e por outros que gostariam de ver os 85 milhões de euros alocados ao projecto de restauro investidos na construção de habitação, mas contando com o apoio da comunidade judaica local, a reabilitação vai avançar em breve, sendo os custos partilhados pela cidade, o estado da Baviera e o governo federal. 

O dinheiro será aplicado, sobretudo, na consolidação das estruturas, mas também no centro de documentação, que poderá vir a acolher estúdios para artistas, e em novos painéis capazes de elucidar o visitante sobre o que ali se passava e o que significava cada construção.

Julia Lehner, que ocupa o cargo equivalente ao de uma vereadora da Cultura, não tem dúvidas de que é importante manter íntegros estes locais. Trata-se, sublinha, de “fazer falar as pedras para que a história não se repita”.

Joachim Hamburger, presidente da comunidade judaica de Nuremberga, não poderia estar mais de acordo: “Se destruirmos esta história, perdemos a oportunidade de tornar verdadeiramente visíveis os perigos do totalitarismo.”

Depois da Segunda Guerra, escreve a AFP, alguns dos espaços ocupados pelo regime foram destruídos para que não se transformassem em locais de peregrinação, como o bunker de Berlim onde Hitler se terá suicidado, mas outros, por força da necessidade, foram reutilizados (o aeroporto de Tempelhof e a sede do Ministério da Aviação em Berlim, hoje ocupada pelo das Finanças), camuflando, de certa forma, o papel que tiveram no passado recente do país. 

A Alemanha estava em ruínas — em Nuremberga, por exemplo, 90% dos edifícios foram destruídos pelos bombardeamentos de 1945 — e, perante a gigantesca factura económica e social a pagar pela guerra, impunha-se aproveitar o que tivesse ficado de pé. 

No pós-guerra chegou a considerar-se a hipótese de não reconstruir a cidade, deixando-a como uma memória do horror da guerra e do nazismo, mas esta acabou por ser, em parte, reerguida. 

Reconhecendo o valor simbólico que tivera enquanto epicentro da máquina de propaganda de Hitler, as nações vencedoras escolheram o tribunal de Nuremberga como cenário dos julgamentos dos criminosos de guerra nazis, um processo histórico cujo 75.º aniversário se comemora este ano.

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