Uma rua para Baptista-Bastos

Falecido há mais de três anos, em Maio de 2017, Armando Baptista-Bastos ainda não tem uma rua em Lisboa. Se a vida fosse perfeita e justa, essa rua seria na Ajuda, onde o escritor cresceu, talvez na mesma rua que em tempos se chamou Rua da Palavra.

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Rui Gaudêncio

Nos últimos dois séculos, poetas, escritores e jornalistas cantaram Lisboa. José Gomes Ferreira deu-nos os pátios e as festas populares, esquecidos por um dia da miséria do resto do ano. José Rodrigues Miguéis pincelou uma Avenida Almirante Reis que já não existe, definida pelos pregões das varinas e pelo chiar do eléctrico. Eça e Ramalho esculpiram o Chiado romântico, talvez exagerado na sátira, mas fervente de chistes e (des)ordem social. Raul Brandão foi o cronista imparcial da transformação da cidade e dos regimes. Fialho de Almeida, esse, relatou e inventou a Baixa das calúnias e dos conflitos.

A lista é quase interminável. Cesário Verde deu-nos as mulheres dos bairros populares. Ary dos Santos as figuras impagáveis, personagens de um romance nunca escrito. Como Gomes Leal, o boémio convertido em católico pio, Lisboa revelou-se de todos os ângulos. Foi misturada como um baralho de cartas de onde cada autor conseguiu encontrar um naipe diferente. Ficou mais rica a cidade com este exército de cronistas, mesmo que muitos dos visados tenham morrido como vieram ao mundo: sem um vintém no bolso.

Há, porém, um denominador comum entre todos estes homens de letras que cantaram Lisboa. Todos eles têm uma rua que os homenageia e lembra o seu contributo para o inesgotável cancioneiro policromático da cidade que Alain Tanner quis ver «branca» e Arpad Szenes pintou quase sempre de amarelo.

Falta, porém, um último acto de justiça. Chamemos-lhe uma reparação histórica. Falecido há mais de três anos, em Maio de 2017, Armando Baptista-Bastos ainda não tem uma rua em Lisboa. Se a vida fosse perfeita e justa, essa rua seria na Ajuda, onde o escritor cresceu, talvez na mesma rua que em tempos se chamou Rua da Palavra – anacronismo num tempo em que poucos pensavam no valor e polissemia das palavras. Ou na rua onde Bastos veio ao mundo sem um queixume, sem um grito, a ponto de a parteira lhe pregar duas palmadas nas nádegas e forçar o recém-nascido a berrar. «Nasci a levar pancada e a protestar», dirá em Lisboa Contada pelos Dedos. «Pela vida fora, nunca deixei de protestar e levar pancada.»

Baptista-Bastos foi o último cronista da cidade de Lisboa. Mostrou-nos a Calçada da Ajuda, «ladeira macia» por onde Matateu subia como herói dos estádios. Descreveu Alfama de Belarmino e as Salésias das tardes de glória do Belenenses (não por acaso, no mesmo momento em que o escritor nasceu, «um berro unânime subia do Campo das Salésias (…). O grito esplendente, enorme, embatente de fervor e aleluia, que a família, atónita e jubilosa, pensou ser um evidente sinal de regozijo e exaltante alvíssara por ter nascido mais um Bastinhos (…) celebrava, afinal, um golo do Belenenses nas redes do Carcavelinhos»). Mas Baptista-Bastos relatou, com incomparável carinho, a Lisboa dos simples.

As personagens da ficção de Baptista-Bastos não são de Lisboa, são definidas por bairros, ruas, microcosmos sociais, numa teia amorosa de história e tradição. O pai, quando interpelado sobre a sua nacionalidade, vocifera num acto de amor: «Sou da Rua Bombarda», da mesma maneira que Beatriz Costa, questionada no Brasil sobre a sua cidade de proveniência, afirmara: «Sou do Chiado.»

Ao mesmo tempo, toda a ficção de Baptista-Bastos é também orgulhosamente lisboeta, como metonímia humana da riqueza da cidade. Interpelado por um polícia em Lisboa Contada pelos Dedos, um miúdo responde que é de Lisboa.

– Sim. Mas de onde? De que sítio?

– De toda.

Também Armando Baptista-Bastos foi escritor de toda a cidade. Crítico dos seus desvios e perversões. Amante de todos os recantos e tradições. Numa altura em que se aproxima o sexagésimo aniversário do início da carreira literária do escritor e jornalista, não ficaria mal à cidade iniciar o processo de atribuição do seu nome a uma rua de Lisboa, enriquecendo a toponímia lisboeta como justa paga a um dos escritores que mais contribuiu para o conhecimento e deleite da rica toponímia da cidade.

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