A ratoeira do ego

Namorando o apoio do primeiro-ministro, de cuja família política nunca chegaram convites para casamentos de conveniência com membros da sua própria família, o actual presidente permite-se uma inversão de regras que se pode voltar contra ele.

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Nuno Ferreira Santos

Não tenho a menor hesitação ao afirmar que, globalmente, Marcelo Rebelo de Sousa tem sido um bom Presidente da República. Desde logo, porque sempre foi um predestinado para o exercício do cargo. Marcelo é um homem culto e, também por isso, dignifica o país lá fora e inspira os portugueses cá dentro. É igualmente um homem sensível e dado aos afectos, o que o faz descer ao nível dos problemas de cada cidadão, especialmente dos mais humildes e desfavorecidos, transmitindo-lhes motivação e reforçando-lhes o sentimento de pertença. Por fim, é um democrata pleno no sentido inclusivo da palavra, que valoriza o cargo e nele se sente bem, logo representa bem a República.

Para além das capacidades naturais e habilitações prévias, acresce que durante este primeiro mandato, o presidente conseguiu moderar o seu conhecido estilo maquiavélico e apoiou com razoável êxito uma solução governativa original que, certamente com falhas graves que não vêm aqui ao caso, se revelou melhor do que se temia, afastando o temor da ingovernabilidade e o pavor da insolvência. Termino os encómios, destacando que Marcelo tem servido exemplarmente como vacina lusa contra o extremismo e o populismo.

Contudo, apesar das aptidões e do bom trabalho, ninguém pode nem deve ter aceitação unânime. Nem mesmo Marcelo, que ao almejar agora uma aclamação semelhante à que teve Mário Soares, se deixa levar pelo ego e parte para a eleição do segundo mandato com jogos de bastidores que o colocam perante um considerável risco. Namorando o apoio do primeiro-ministro, de cuja família política nunca chegaram convites para casamentos de conveniência com membros da sua própria família, o actual presidente permite-se uma inversão de regras que se pode voltar contra ele.

Marcelo é um democrata com uma perspectiva sociopolítica na linha da doutrina social da igreja, logo de perfil parcialmente conservador. Não é claramente este o perfil de um partido como o Partido Socialista. Ao ver o PS apoiar Marcelo, o PSD e, sobretudo, o CDS podem resolver lançar outros candidatos. Seria estranho ver Marcelo eleito pala dita esquerda contra os candidatos da sua direita de sempre. Deste modo, o desconforto não surge apenas na família natural do presidente e, até na sua agora desejada família de adopção, há quem veja com bons olhos a apresentação de um candidato que levante os podres do regime sem pôr em causa o regime. E até já se fala da necessidade dos sectores moderados do PS e dos sectores mais sociais do PSD encontrarem um candidato que os represente a ambos. Ou seja, subitamente, parece que apenas António Costa se revê na presidência de Marcelo.

Preso numa ratoeira que não quis evitar, Marcelo Rebelo de Sousa poderá vir a ter de enfrentar candidatos com algum peso eleitoral, como Ana Gomes, ou capacidade intelectual e inteligência política, como Adolfo Mesquita Nunes. Ambos têm condições para recolher um número muito significativo de eleitores que, não estando propriamente descontentes com a figura de Marcelo nem com o regime em si, estão de facto descontentes com algumas falhas deste sistema que Marcelo nunca quis afrontar devidamente. Mas, como em quase tudo na vida, também aqui o lado mau convive com um lado bom; havendo bons candidatos à esquerda e à direita, é mais provável o esvaziamento do potencial eleitoral do candidato anti-sistema. Se isso vier a acontecer, conclui-se que, até preso na ratoeira do seu ego, Marcelo Rebelo de Sousa continua a vacinar-nos contra o extremismo.

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