Covid-19: “Nos primeiros dias, infectámos muitas pessoas – eu inclusive”

Confinamento obrigatório, números assustadores de infectados e mortos, espaços públicos transformados em hospitais de campanha. Os espanhóis vivem dias de agonia devido à pandemia. “Não conseguimos pensar muito no futuro, pois iríamos enlouquecer”, há quem diga.

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Madrid em isolamento Reuters/SERGIO PEREZ
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Para os espanhóis confinados em casa há quase um mês, as conferências diárias das autoridades de Saúde transformaram-se num ritual tenebroso. Ouvem-se os novos números de infectados, de mortos e de recuperados – mais 637 mortos, foi anunciado nesta segunda-feira, o número mais baixo em duas semanas; 13.055 mortos ao todo; 40.437 recuperados, mais de 135 mil infectados, quase 60 mil hospitalizados. 

O pico está a passar? Não há, nem poderia haver certezas, ou uma data para se regressar a algum tipo de normalidade. O cansaço do isolamento começa a instalar-se e aumenta a preocupação sobre o que vem a seguir: uma das piores crises económicas mundiais que economistas e governos já dão como certa.

“Os números são assustadores. A incerteza sobre o fim, ou sobre o início do fim, causa um desespero... No princípio, [o isolamento] era de uma semana ou 15 dias, e agora se calhar são dois meses”, diz ao PÚBLICO Ana Rebelo, portuguesa especialista em comércio online residente em Madrid. “Já há um cansaço por estarmos em casa e [nota-se] um decréscimo no ânimo geral. O que afecta o ânimo das pessoas é já não serem apenas casos desconhecidos que se vêem na televisão, já todos conhecem pessoas que foram infectadas e que morreram.”

Espanha é o primeiro país europeu e o segundo no mundo (fica apenas atrás dos Estados Unidos) mais atingido pela pandemia de coronavírus. Nenhum governo europeu estava preparado para esta crise, apesar do exemplo que se via na China desde Dezembro. Em Espanha como noutros países tem faltado material médico (luvas, máscaras, toucas, batas e ventiladores) e o Governo apressou-se a adquiri-lo. Mas nem por isso deixou de ser difícil. “Espanha aproximou-se de Itália muito depressa e não estávamos preparados”, diz Jose Angel, psicólogo clínico de 36 anos residente em Badajoz.

Os profissionais de saúde não estavam prontos para enfrentar um vírus sobre o qual sabiam muito pouco. Por isso, na primeira fase, muitos ficaram infectados e infectaram outras pessoas. “Médicos, enfermeiros e auxiliares agiram um pouco sem as precauções necessárias. Nos primeiros dias, infectámos muitas pessoas – eu inclusive – e, quando começámos a cair que nem moscas, começámos a tomar todas as precauções: a usar o equipamento adequado, a fazer o distanciamento, a desinfecção e o isolamento dos pacientes de covid-19. Agora já não contagiamos”, diz Cony Gracia, médica de 61 anos que está em casa por ter sido infectada. 

Erro caro

Durante semanas, os espanhóis foram sendo confrontados, a cada dia, com números galopantes de mortos nas notícias. Trancados em casa, sentiram-se impotentes, não sabendo como lidar com a realidade, temendo pela vida dos mais próximos. “Não tenho ânimo para nada. Começo a ler um livro, mas não consigo ler por muito tempo, fico cansada”, diz Rosa Teresa, cozinheira de 61 anos num hospital em Ávila, a noroeste de Madrid. “Leio é muita informação noticiosa, mas põe-me ainda mais nervosa”, admite.

“Os meios de comunicação social estão a bombardear a sociedade com o que se passou aqui e acolá e isso está a semear o medo. O medo faz-nos ficar mais alerta, mas também não é bom, por deixarmos de pensar”, comenta Raquel, de 21 anos e estudante universitária de Política e Relações Públicas.

No início, o coronavírus não foi levado muito a sério em Valência, disse Álvaro Zarzuela, 37 anos, proprietário de uma loja. Mas as constantes notícias e a declaração do estado de emergência pelo Governo (entretanto renovado até 26 de Abril) mostraram que a situação era grave, que era para ser levada a sério, apesar de alguns continuarem a desrespeitar a quarentena.

A descontracção inicial foi um erro que muitas pessoas pagaram caro em Ávila, acrescenta Rosa Teresa. “Vivemos numa cidade pequena, mas temos muitos mortos [69 em 638 casos até sábado]. Nos primeiros dias, muitas pessoas desrespeitaram a quarentena, mas agora cumprem”, diz, contando que foi mandada para casa depois de uma colega ter ficado infectada. Sem poder trabalhar à distância, a vida de Rosa sofreu um abanão. Por estes dias pouco há que a distraia entre as paredes a que está confinada: dedica-se a cozinhar, a ver televisão e, de quando em quando, vai à farmácia e ao supermercado comprar fruta e outros bens, contando com a ajuda dos filhos que lhe trazem “água e leite de três em três dias”.

Situação bem diferente vive Joaquín Oliveira, psicólogo de 37 anos. Consegue acompanhar os pacientes a partir de casa, conversando com eles por videoconferência. “Ligo às famílias para saber como estão, se têm algum problema. Ajudo-as a lidar com a ansiedade por muitas terem problemas económicos e estarem preocupadas com a situação em Espanha”, diz o psicólogo, sublinhando que a sua grande preocupação é os seus pais ficarem doentes. “Se alguém for para o hospital, não pode receber visitas. Não se pode fazer nada.”

Abstrair-se desta realidade é muitas vezes a palavra de ordem e o pensamento positivo a solução mais imediata. Aproveita-se o confinamento para usufruir da companhia daqueles com quem se partilha casa. “Tenho cozinhado e vivo com a minha namorada. Temos mais tempo para estarmos juntos”, disse Joaquín Oliveira, sublinhando que a “maioria das pessoas está a obedecer às ordens para ficar em casa”.

A polícia espanhola faz acções de controlo à circulação e quem sai de casa sem uma razão estritamente essencial, como ir à farmácia ou supermercado, é multado. “Vivo numa rua principal [em Madrid] e não vi nenhuma acção policial, mas sei que está a haver. Conheço uma pessoa que foi multada em mil euros por estar a visitar pessoas”, disse Ana Rebelo, que está grávida de quatro meses.

Revolta contra quem foge

No fim-de-semana depois da declaração do estado de emergência, muitos madrilenos saíram da cidade rumo às suas segundas casas em vilas mais pequenas e no campo, promovendo o contágio. “Houve bastante revolta na primeira semana. Há muita revolta de muita gente de Madrid, que aproveitou para fugir da cidade. Sentiu-se bastante nas redes sociais com muitos vídeos feitos em casa”, continua a portuguesa, que vive na capital há três anos com o marido. Decidiu não regressar a Portugal para não correr o risco de infectar outras pessoas.

Álvaro Zarzuela, Esther Martín e o filho, Aníbal, de sete anos, estão a cumprir estritamente o isolamento, chegando a um novo patamar, tentando ignorar dentro dos possíveis o que se passa para lá da porta da rua. “Não conseguimos pensar muito no nosso futuro, pois iríamos enlouquecer. O exterior está superstressante, mas dentro de casa não. Continuamos a trabalhar online e o nosso filho teve aulas pela Internet. É maravilhoso dentro de casa”, diz Esther Martín, sublinhando que “finalmente têm tempo para estar uns com os outros”. “Se não fosse a incerteza do nosso negócio, seria maravilhoso.”

O casal é proprietário de uma loja em Valência e a sua maior preocupação é o que vem aí, ultrapassada a crise de saúde. Estão relativamente confortáveis por terem poupanças para aguentarem até Junho, mas esperam que o Governo avance com medidas que ajudem a suportar o embate económico. “Estamos em casa e recebemos algumas encomendas, mesmo que não as possamos enviar. Estamos a processá-las, só não as enviamos”, explica Esther, com Álvaro a salientar que “não estão a fazer nem a perder dinheiro”, exceptuando com a renda da loja. O único trabalhador da loja foi enviado para casa em regime de layoff e vai regressar quando a loja reabrir.

Teme-se o futuro

As preocupações de Esther e Álvaro são as mesmas de milhões de espanhóis. Economistas e governos já dão como certa uma crise económica duríssima, considerando-se que pode ser a pior desde 1929, por ser a primeira em que a procura e a oferta caem a pique simultaneamente. O desemprego pode bater recordes não apenas em Espanha, mas em todo o mundo. “Há muita preocupação pelos trabalhadores por conta própria, que estão numa situação muito precária, e aí há grande ansiedade”, comenta Joaquín, enquanto Esther tem esperança que um “novo ambiente” político nasça por esta situação ter “provado que a globalização falhou”.

De acordo com dados de 2019, citados pelo El Diario, Espanha tem pelo menos 2,9 milhões de trabalhadores em part-time e com muito pouca protecção social, fruto das políticas de flexibilização laboral dos últimos anos. Muitos não têm direito a subsídio de desemprego, apesar de pagarem impostos.

“As pequenas empresas e os jovens que trabalhavam no turismo vão deixar de ter trabalho e não sei como vão sobreviver. Os meus dois filhos estão na expectativa de que alguma coisa aconteça e terei de ser eu a ajudá-los”, diz a médica Cony Gracia.

A realidade já está a ser dramática para mais de 300 mil espanhóis (total de 3,5 milhões de desempregados) que ficaram sem trabalho ainda antes de o Governo proibir os despedimentos, um aumento de 9,31% face a Fevereiro, com o El País a dizer que é o pior “mês da história”. “Quem tem casa e comida está bem, quem perdeu o trabalho vai passar muito mal. Os pobres pagam sempre tudo”, desabafa Cony Gracia. “Espero que haja políticas sociais e que o Governo tenha isto em conta.”

O Governo espanhol já aprovou um segundo pacote económico na ordem dos 200 mil milhões de euros para apoiar trabalhadores e empresas e decretou moratórias às rendas, a suspensão dos despejos e adiou o pagamento de impostos. E o primeiro-ministro, Pedro Sánchez, prometeu que o serviço nacional de saúde será uma das grandes prioridades no futuro. Porém, há quem opte pela precaução, deixando claro o fosso entre palavras e acções. “O sistema de saúde tem de ser reforçado e visto como imprescindível”, diz Joaquín Oliveira.

“O Governo continua a ter o apoio daqueles que votaram nos partidos que o integram, mas não está a ganhar o apoio de quem votou noutros partidos”, continua o psicólogo. E frisa que a sociedade espanhola continua dividida: “Antes era pela política ou independentismo catalão, agora é por causa da crise sanitária.”

Uma sondagem publicada nesta segunda-feira pelo El Periódico, e realizada pela Gesop, mostra que o apoio ao Governo está a diminuir – 42,9% disseram não concordar com a actuação do executivo nesta crise (no início de Março eram 31,6%), 30,3% disseram que a equipa de Sánchez está a trabalhar bem (no início de Março eram 44%). 

A mesma sondagem diz que 11,9% dos espanhóis estão a lidar mal com o confinamento, 59,3% disseram que estão a lidar bem com as restrições e 28,1% declararam que estão a enfrentar a crise de forma “normal”. 

Como médica, Cony Gracia garante que as autoridades tudo têm feito para se evitar o aumento do número de infectados e mortes e que não é o momento para se entrar em jogos políticos. “Se o PP ou o Vox forem para o governo, apenas se vão preocupar com os empresários”, vaticina. 

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