Espanha e França usam alta velocidade na nova vaga de comboios sanitários

Necessidade de aliviar os hospitais das zonas mais congestionadas leva à utilização de comboios para transportar doentes para regiões mais poupadas à epidemia. Uma novidade para a alta velocidade, mas não para o caminho-de-ferro que já no séc. XIX tinha inventado os comboios sanitários.

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Reuters/POOL

A Renfe (operadora ferroviária espanhola) está a transformar três comboios Talgo de alta velocidade para transportar doentes entre comunidades autónomas a fim de aliviar as regiões que têm os hospitais mais sobrecarregados. Uma iniciativa exactamente igual à que os franceses puseram em marcha no dia 1 de Abril com a utilização de dois TGV para transferir doentes da Alsácia para a Nouvelle Aquitaine.

Em Espanha foram preparados três Talgos da série 730 que são os mais adequados para alcançarem qualquer ponto do país vizinho. São comboios de alta velocidade híbridos (eléctricos e a diesel) e com eixos variáveis que lhes permite circular em linhas de bitola (distância entre carris) europeia ou ibérica, já que a rede espanhola utiliza a primeira para a alta velocidade e a segunda para os comboios convencionais.

Estas composições têm ainda a característica de possuir um piso rebaixado, ficando as portas ao mesmo nível das plataformas das estações, sem nenhum degrau, facilitando a entrada e saída dos doentes e dos equipamentos.

As carruagens foram despojadas dos seus assentos para que se possam instalar as macas e cada comboio só vai poder transportar 18 doentes acompanhados de profissionais de saúde.

O objectivo é, numa primeira fase, transportar doentes de Madrid para as cidades mais próximas da capital espanhola, nomeadamente Ávila, Segóvia e Toledo, podendo abranger destinos mais longínquos se se tornar necessário. Provavelmente deverão também transportar doentes desde Barcelona que é a segunda cidade da península com mais infectados e cujos hospitais têm as unidades de cuidados intensivos também saturadas.

TGV em França

Foi pelas mesmas razões que em França se realizaram já TGV sanitários para evacuar 36 doentes do Leste para o Oeste do país, aproveitando a capacidade existente nas regiões onde o pico da epidemia ainda não chegou. “Ganharemos esta guerra provavelmente através das camas dos cuidados intensivos com a nossa capacidade de, ao nível do território nacional, utilizar de maneira inteligente, bem coordenada, os meios de reanimação entre as regiões”, disse a directora geral do Centro Hospitalar de Metz, Marie-Odile Saillard. 

Os doentes foram transportados de Mulhouse e Nancy para Poitiers e Bordéus e distribuídos por vários hospitais periféricos ainda relativamente preservados da epidemia.

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Ao contrário do Talgo espanhol de piso rebaixado, os TGV franceses utilizados foram composições de dois pisos, ficando os doentes em cinco carruagens – em número de quatro por cada veículo - instalados no piso inferior em macas presas aos próprios assentos. Em cada carruagem viajavam dois médicos e quatro enfermeiros e a tripulação do comboio incluía um electricista para assegurar que não faltaria energia eléctrica aos ventiladores.

A opção das autoridades francesas pelo TGV para transportar doentes sujeitos a cuidados intensivos foi explicada por três razões: a estabilidade durante a viagem (menos solavancos do que uma ambulância), a segurança do modo ferroviário e a existência de espaço para o equipamento médico e profissionais de saúde. E há uma quarta razão, que é a capacidade: um TGV pode transportar até 30 doentes enquanto um Airbus A330 militar não alberga mais do que seis.

Esta foi a primeira vez que um TGV foi usado como comboio sanitário, despertando assim o interesse dos media e da opinião pública para a importância da SNCF (congénere da CP) enquanto empresa pública. Bernard Aubin, secretário-geral da Federação Independente dos Caminhos-de-Ferro e dos Sindicatos dos Transportes, não perdeu a oportunidade de recordar isso mesmo. Num artigo publicado no Infodujour, critica as intenções do governo em “partir a SNCF em cinco sociedades anónimas levando a empresa à sua extinção e fazendo-a desaparecer da memória dos franceses”. No entanto, “o coronavírus oferece um regresso pela porta grande à SNCF restituindo-lhe aquilo que esteve na origem da sua criação: servir os cidadãos”.

Os primeiros comboios sanitários

Um comboio sanitário de alta velocidade é uma novidade na Europa, mas o transporte de doentes por caminho-de-ferro remonta ao século XIX, estando sobretudo associado à evacuação de feridos durante as guerras. O Império Austro-Húngaro tinha comboios sanitários em 1880, há registos de um comboio sanitário francês na exposição universal de 1873, mas já durante a Guerra da Crimeia (1853-1856), quando em Portugal ainda nem havia caminhos-de-ferro, já existia este meio de socorro por via férrea.

Várias companhias ferroviárias, por incumbência dos seus governos, tinham uma reserva de carruagens em uso comercial que poderiam ser facilmente transformadas em enfermarias, retirando assentos e substituindo-os por beliches para o transporte de doentes. Mas havia países que tinham mesmo comboios sanitários permanentes, prontos a circular em caso de guerra. Nalguns casos, mais do que comboios sanitários (destinados a transportar feridos em condições medicalizadas) conceberam-se também comboios-hospital, que incorporavam já recursos próprios para tratar (e não só transportar) os doentes.

Em França, durante a I Grande Guerra, como os comboios permanentes se revelaram insuficientes, foi necessário transformar vagões de mercadorias para evacuar feridos. Foram dotados de suspensões idênticas às das carruagens de passageiros, para melhor comodidade dos doentes, abriram-se janelas e instalaram-se lâmpadas. Mas como não havia ligação entre os vagões, ao contrário das carruagens de passageiros, os feridos viajavam isolados e o pessoal médico só podia mudar de vagão durante as paragens.

Os comboios permanentes tinham melhores condições de alojamento e algum equipamento médico. Carruagens-restaurante onde em tempo de paz viajava uma clientela sofisticada (os comboios eram o modo de transporte mais moderno na época) serviam agora de alojamento e escritório a médicos e enfermeiras.

À data do Armistício, em 11 de Dezembro de 1918, o exército francês contava com 183 comboios sanitários entre permanentes, semi-permanentes e improvisados.

A evacuação de milhares de feridos de guerra por carris permitiu salvar muitas vidas, apesar de muitos morrerem pelo caminho devido aos solavancos, à fraca assistência durante a viagem e às próprias limitações da medicina na época.

A evolução tecnológica da ferrovia e das ciências médicas caminharam a par na geração de comboios sanitários durante a II Grande Guerra, mas depois dos anos 50 caíram em desuso. No caso francês, circulava até há quatro anos um último resquício, herdeiro dos comboios sanitários do período das guerras. Tratava-se do comboio dos peregrinos, uma composição da SNCF que transportava fiéis para Lourdes. A maioria eram doentes e pessoas com deficiência, que viajavam deitadas em carruagens adaptadas.

Mas o comboio foi extinto por o material circulante ter chegado ao fim da sua vida útil.

Curiosamente, comboios semelhantes circularam em Portugal nos anos 80 do século passado quando se realizaram viagens de peregrinos de Roma para Fátima, alguns dos quais eram também doentes ou pessoas com deficiência. A viagem era feita em carruagens couchette (beliches) e aqueles comboios internacionais foram os únicos que não tiveram como destino Lisboa ou Porto, mas sim a estação de Fátima – Chão de Maçãs, onde se fazia depois transbordo, por via rodoviária, para Fátima.

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Por fim, regressemos à evolução das condições sanitárias e de assistência médica destas composições que fizeram história. Em 1915, os comboios sanitários ingleses tinham capacidade para 500 doentes, assistidos por três médicos, seis enfermeiros e 47 auxiliares de enfermagem. Por essa altura, em França os comboios sanitários improvisados transportavam 396 feridos, acompanhados por dois médicos, um farmacêutico e 40 enfermeiros e ajudantes. Em ambos os casos dá uma média de um profissional de saúde para cada nove feridos. Esta semana, o TGV sanitário francês transportou 20 doentes assistidos por dez médicos e 20 enfermeiros, ou seja, três profissionais de saúde por cada dois doentes.

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