O vírus que mudou o Mundo

E agora? Que mundo vai sobrar destas economias em risco de ruína, onde as massas de desempregados podem vir a tornar impossível a governação futura? Não sabendo o que temos pela frente, podemos pelo menos concluir que o vírus mudou o nosso Mundo.

O funcionamento das nossas sociedades vinha acusando nas últimas décadas falhas óbvias e notórias, que o facilitismo e a cobardia, características inatas da natureza humana, se conluiaram para eternizar. As inconsistências no funcionamento das nossas sociedades eram graves e variadas, perfeitamente visíveis a olho nu, mas lá nos fomos habituando a elas, louvando mesmo os efeitos positivos de muitas dessas aberrações.

Desenvolvemos nas últimas décadas uma sociedade de abundância, que, no entanto, institucionalizou uma brutal desigualdade na distribuição de riqueza, que não deixa de fazer lembrar a corte de Luís XIV. Se o que se passava em Versalhes no século XVIII nos parece hoje insuportável, a verdade é que não o era de todo na altura. Assim como hoje são perfeitamente normais remunerações de milhões ou até de dezenas de milhões para chefes de empresas que depois pagam salários mínimos aos restantes trabalhadores.

Por outro lado, as nossas sociedades passaram a menosprezar as funções de interesse colectivo, apelando a um Estado mínimo e barato. E a corrupção encontrou neste ecossistema um campo natural. Os políticos que utilizam o poder para seu enriquecimento pessoal, os juízes que vendem o exercício da justiça, as pontes que caem, são parte de uma paisagem supostamente radiosa. É certo que a corrupção não foi inventada nos últimos 30 anos. A corrupção é uma infecção latente, é um vírus endógeno. A diferença é que, nas democracias ocidentais, a corrupção passou a ser não só generalizada, como bem tolerada.

Um encravamento recente do sistema ocorre com a crise financeira de 2007. A criação de crédito sem limites levou à indigestão e ao colapso. Não era obviamente a primeira vez na história da humanidade que uma situação destas acontecia. Sorte a nossa, dessa vez, o conhecimento de História de alguns políticos fê-los deixar de lado as crenças na eficácia da mão invisível e agarrarem-se com força ao volante do poder público para salvar a economia. Numa economia que se tinha desenvolvido global, quase sem fronteiras, a estrutura de poder continuava baseada em governos nacionais, que no desespero foram obrigados a encontrar espaços de entendimento supranacional. Ainda que declinado de forma deficiente, o que aconteceu na altura foi, apesar de tudo, um exercício de governo do planeta, face ao que era uma crise global. Na altura, EUA e China constituíram-se em equipa comum, enquanto a Europa fazia gala em mostrar a triste figura de um coro desafinado. O pior lá passou, e enquanto alguns perderam a pele, outros ficaram ainda mais ricos. E a normalidade aparente voltou.

Vencida a crise de 2007-2015, o sistema em si não mudou. Ou melhor, mantendo-se no essencial, passou a conviver com feridas abertas de descontentamento que deram lugar ao aparecimento das forças nacionalistas anti-globais, que apregoavam a necessidade de auto protecção com bonitas muralhas nas fronteiras. O Mundo global passou a estar infectado pelo vírus do populismo nacionalista. Os dogmas da liberdade de circulação e comércio foram mesmo postos em causa pela administração americana, liderada por um vendedor de sonhos e fazedor de pesadelos, irresponsável e, como se vê, inimputável.

É este Mundo cacofónico que um pequenino vírus, coroado segundo dizem, vai fazer ajoelhar. Primeiro na China que reage, como é de bom-tom, sobranceiramente, mas que rapidamente compreende o risco e vai fazer uso do poder ditatorial de que dispõe para responder com força bruta à ameaça letal. Mas, já agora, em abono da verdade, a Coreia do Sul e a Formosa, sendo democracias, não desmereceram na eficácia da resposta colectiva a esta ameaça terrível e disruptora. Não fica, portanto, provado que é preciso uma ditadura para vencer uma ameaça total.

Enquanto isso, na Europa e nos Estados Unidos, o poder político e o povo em geral assistia com curiosidade ao incêndio que paralisava as economias asiáticas, sem compreender que os vírus não respeitam fronteiras, mesmo quando as muralhas são bonitas. Aliás, temos bem presente da História que as pestes da Idade Média nunca respeitaram as fronteiras dos Reinos, matando indiscriminadamente povos por esse mundo fora.

O que aconteceu desta vez foi muito rápido. Primeiro a Itália, depois os outros países europeus, que, apesar de dotados de sistemas de saúde universais, soçobraram no pânico. O fecho das cidades e o peso dos mortos na Europa marcará para sempre este início de milénio, que nos fez mergulhar no absoluto caos económico. E mais uma vez, infelizmente, a Europa teve a oportunidade de mostrar aos Europeus e ao Mundo que a sua União releva da ficção.

O caos na Europa não passou despercebido aos chineses, promitentes herdeiros da supremacia global. Nem sequer aos russos, sempre esperançosos de acabar de vez com a União Europeia depois de verem os ingleses a sair. Neste descalabro ocidental, os EUA são o tonto que se segue, prejudicados por terem ao volante o actual Presidente. Caiu a noite no Império que Roosevelt construiu.

E agora? Que mundo vai sobrar destas economias em risco de ruína, onde as massas de desempregados podem vir a tornar impossível a governação futura? Não sabendo o que temos pela frente, podemos pelo menos concluir que o vírus mudou o nosso Mundo.

Mas devemos sobretudo tentar perceber o que se passa e o que nos espera. Sabemos agora que há riscos que só globalmente podem ser enfrentados e que nenhuma Nação, por si, é entidade suficiente e competente. Como diz Andrew Sheng – antigo responsável da autoridade financeira de Hong Kong e reconhecido especialista da China –, vivemos num mundo interactivo e interligado de sistemas complexos em constante adaptação e sujeitos a permanentes choques exógenos e endógenos. Responder a estes choques exige simultaneamente capacidade de intervenção colectiva, domínio tecnológico e coordenação planetária, o que por sinal é rigorosamente o contrário de aceitar a supremacia da iniciativa privada e das fronteiras dos Estados-nação. Sabendo que fechar os olhos e as fronteiras não é solução, porque os choques irão continuar a acontecer.

O vírus mudou o Mundo e os primeiros a compreendê-lo, embora só na segunda chamada, foram os chineses, que, apoiados hoje numa capacidade produtiva inigualável, num poder central absoluto e numa imensa sofisticação tecnológica, partem para a conquista da supremacia global num Mundo vencido pelo vírus e incapaz de perceber como deve agir no futuro. Se nós não entendermos como vamos ter de nos organizar, será que vamos ter de aceitar um Mundo sob dominação chinesa, com eventualmente algumas bolsas de desolação patrulhadas por bandos de Mad Max?

No entanto, prever o fim do nosso sistema de sociedade é porventura cometer o mesmo erro de Marx quando este, analisando a sociedade industrial do século XIX, previu que o capitalismo caminhava para a capitulação. Como sabemos não foi isso que aconteceu, porque o capitalismo evoluiu, adequou-se e adaptou-se. Aliás, a leitura de Marx nunca esteve limitada aos marxistas: os capitalistas avisados também sabem ver e ler. Evoluir para sobreviver é a primeira lei da vida e o capitalismo lá se foi reformando, aprendendo a integrar os interesses dos trabalhadores, participando no Estado Social e, recentemente, propondo-se até a salvar o planeta.

Mas que não haja dúvidas: os desafios que temos são existenciais e as nossas formas de governo político e económico são hoje parte do problema. O modelo simples do livre comércio e do lucro sempre maior a cada trimestre não prepara a sociedade para os choques endógenos e exógenos que condicionam a nossa sobrevivência. Num período de dez anos, as forças públicas foram chamadas duas vezes para salvar a humanidade da ruína. A nossa sobrevivência não depende, como vimos, dos mercados financeiros, mas sim da capacidade de acção do colectivo a que pertencemos.

O desafio está em conciliar o valor, para nós insubstituível, da liberdade e do espaço individual e a sua capacidade única de contribuir para o progresso, com uma maior relevância dada aos interesses colectivos. Equação complexa, mas inevitável de superar se não queremos perder os ganhos civilizacionais dos últimos séculos, que nos fizeram afluentes e livres. Vamos ter de refazer a Carta dos Direitos do Homem, integrando princípios de comportamento subordinados ao interesse colectivo. Vamos ter de refazer o Direito e incluir na Moral formas de nos responsabilizarmos todos na defesa da sobrevivência da Humanidade, ao mesmo tempo que preservamos a diversidade e os direitos do indivíduo e do seu espaço privado, intelectual e físico.

Conscientes de que a capacidade de Portugal para influenciar o caminho do Mundo já foi mais importante do que é hoje, resta-nos sonhar que vamos poder continuar a nossa História quase milenar.

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