A democracia tem linhas vermelhas

A decisão de acabar com penas perpétuas atravessou vários regimes, foi cumprida por monarcas e ditadores, e muito estranho seria se fosse agora a democracia a ditar-lhe o fim.

A democracia não é o regime em que tudo é permitido a todos. Não é isso que a distingue da ditadura. Não pode permitir que um patrão decida, unilateralmente, sentar uma empregada durante quatro dias em cima de uma balança, exibindo-a aos clientes, só para dar um exemplo recente.

A democracia tem regras e limites e os mais importantes foram vertidos para a Lei Fundamental por uma classe política que tinha uma consciência clara das linhas vermelhas que não deviam ser ultrapassadas. Mas porque há sempre espaço para progredir e aceitar a mudança, a Constituição não é estanque e vai evoluindo no sentido de reforçar a defesa dos Direitos Humanos. Sempre nesse sentido, não noutro.

Há quase 140 anos que não existe, em Portugal, prisão para a vida. A decisão de acabar com penas perpétuas atravessou vários regimes, foi cumprida por monarcas e ditadores, e muito estranho seria se fosse agora a democracia a ditar-lhe o fim. No nosso país, não se encarceram intencionalmente pessoas até à morte desde 1884 e, desde então, a questão não voltou a ser discutida com seriedade. Levar esse assunto a debate, no Parlamento, significaria um retrocesso civilizacional de mais de um século.

E, contudo, está prestes a acontecer. Já não estamos no momento de ignorar que a proposta vai existir ou de esperar que ela não chegue a ser transformada em projecto de lei. Vai acontecer e será na mesma legislatura que votou favoravelmente cinco diplomas para despenalizar a morte medicamente assistida. À medida que o país vai legislando sobre matérias que há uns anos eram designadas por “fracturantes”, o Parlamento vai ser levado a discutir questões - mesmo que não as leve a plenário, elas andam por lá e consomem tempo e recursos nas comissões - que estavam já ultrapassadas e que esbarram nos tais limites pré-existentes, como a prisão perpétua e a castração química.

O Chega prometeu que não iria haver extremismos em Portugal - recordo-me de uma entrevista neste jornal em que o deputado André Ventura garantiu isso mesmo - mas ao mesmo tempo nunca negou ao que vinha. O partido conseguiu votos suficientes para eleger um parlamentar, assumindo que colocaria na agenda temas polémicos, mas no último fim-de-semana, subiu a parada. Não se trata apenas de introduzir mudanças no Código Penal ou na lei eleitoral, para poder castrar quem abusa sexualmente de menores ou para poder reduzir o número de deputados. Trata-se de mudar o regime.

“Este sistema já não serve. Queremos passar para a Quarta República portuguesa”, disse Ventura, no sábado, ao apresentar a sua candidatura a Belém, a partir de Portalegre. “Sim, é altura de mudar esta Constituição”, insistiu. Disse-o, apresentando-se como uma espécie de salvador, de predestinado. “Hoje estou aqui por um lugar e uma missão que é muito maior do nós e a nossa existência. Sou uma pessoa religiosa: mais importante do que fazermos o que queremos, é fazermos aquilo para que estamos destinados. Esta já não é apenas uma luta minha; foi uma missão colocada neste lugar.”

Este discurso - este novo discurso - já não tem nada a ver com o outro que, ainda há uns meses, rejeitava extremismos. O estilo mudou, está cada vez mais solto e desafiante. Agora é que o Chega chegou. As linhas vermelhas são mais importantes do que nunca.

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