Recuperar a política económica

Não podemos esperar por uma nova crise para voltar a discutir política económica. Se as condições do país e da União Europeia mudaram, só um diagnóstico sistémico pode oferecer alternativas ao declínio nacional.

Um recente editorial do Financial Times (FT), oráculo dos mercados financeiros, fez uma surpreendente defesa da política orçamental expansionista como forma de ultrapassar a atual estagnação económica internacional. Os argumentos são simples. A política monetária expansionista esgotou-se, sem ter conseguido os desejados relançamento da atividade económica e aumento da inflação. Pelo contrário, a combinação entre ativismo monetário, austeridade orçamental e estagnação económica (traduzida em escassas oportunidades de investimento) alimentou a formação de bolhas especulativas de ativos financeiros e imobiliários, algo bem visível em Portugal. O FT defende então que, num contexto de taxas de juro baixas ou mesmo negativas, onde problemas de dívida pública desapareceram, os Estados Europeus deveriam abandonar a obsessão do equilíbrio orçamental e deixar crescer os seus défices e endividamento públicos. De facto, com as atuais taxas de juro facilmente qualquer projeto de investimento público consegue ser, não só socialmente, mas financeiramente, rentável.

Estes argumentos tornam-se clamorosos para o caso português. Anos de austeridade orçamental sacrificaram primordialmente o investimento público, hoje dos mais baixos na UE, resultando na progressiva degradação de infraestruturas, como nos transportes públicos, e de serviços públicos, sobretudo no caso da saúde. No entanto, os argumentos do FT estão quase ausentes do espaço público. É fácil perceber porquê. Depois do trauma da crise do Euro e subsequente intervenção externa, qualquer defesa de uma política orçamental expansionista, com recurso a endividamento, é tida como irresponsável, mesmo que esta seja feita com os credores a pagar ao Estado. Sabemos que não foi o nível de endividamento público que forçou os empréstimos oficiais em 2011, mas sim anos de estagnação e endividamento externo recorde, sobretudo privado, causado pela inserção na Zona Euro. Contudo, o equilíbrio orçamental é agora o mantra da direita e do Partido Socialista.

O problema é mais complicado para os partidos à esquerda. O apoio ao último governo do Partido Socialista parece ter resultado no abandono, mais ou menos explícito, da bandeira da reestruturação da dívida, antes entendida como condição para o relançamento do investimento público. Mais uma vez, é fácil perceber porquê. Graças à mudança de política monetária do BCE, problemas de sustentabilidade parecem ter desaparecido. Mais, a desejada reestruturação está, de forma paulatina, a ser conduzida por parte da autoridade monetária, comprando títulos de dívida pública, cujos proveitos são depois transferidos para o Estado na forma de dividendos do Banco de Portugal. No entanto, esta política do BCE é condicional à austeridade orçamental permanente imposta por Bruxelas. O endividamento público não é, hoje, um problema financeiro, mas continua a pairar como uma espada de Dâmocles sobre a política portuguesa. Os partidos à esquerda encontram-se, pois, numa “camisa de sete varas” política, onde a construção de alternativas político-económicas é colocada em segundo plano, substituída pela negociação de medidas mais ou menos avulsas.

O debate sobre política económica estreitou-se mais uma vez por determinação europeia. Se já antes a pertença ao mercado único excluía praticamente qualquer discussão sobre política comercial ou política industrial, a que se juntou a política monetária na sequência da adesão ao Euro, temos agora a quase impossibilidade de discutir política orçamental. Este é um caminho perigoso. Por um lado, a discussão política esvazia-se, substituída pela espuma dos dias, abrindo o caminho para discursos, como o da extrema-direita, que tenta deslocar as responsabilidades de uma economia de emprego precário e mal pago para o campo da xenofobia e do racismo. Por outro lado, conquanto o país tenha crescido e criado emprego nos últimos anos, esta recuperação está dependente de fluxos financeiros externos em busca de rentabilidade nos sectores do imobiliário e turismo nacionais. Qualquer mudança das condições externas tornará saliente a acrescida vulnerabilidade da economia portuguesa. Bolha especulativa no imobiliário, permanentes problemas de sobreendividamento no sector privado, bancos nacionais “zumbis” e o reforço do controlo europeu do Estado português tornam assustadora a perspetiva de uma recessão internacional.

Não podemos esperar por uma nova crise para voltar a discutir política económica. Se as condições do país e da União Europeia mudaram, só um diagnóstico sistémico pode oferecer alternativas ao declínio nacional. Este trabalho implicará mostrar que há alternativas para o financiamento do investimento que não passam pelos apetites conjunturais dos mercados financeiros e das políticas austeritárias do eixo Bruxelas/Frankfurt, assumindo custos e consequências (nomeadamente decorrentes da recuperação da soberania monetária), mas oferecendo a esperança de um projecto político mobilizador.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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