Gostamos muito da ADSE! (?)

Parece claro que estão criadas as condições para que, a médio prazo, a ADSE seja financeiramente insustentável. Será que o “consenso nacional” em torno da ADSE se vai manter?

A Assistência na Doença aos Servidores Civis do Estado (ADSE) foi criada em 1963 como um esquema de proteção na doença aos servidores civis do Estado, sob a tutela do Ministério das Finanças.

Cerca de 56 anos depois, um estranho consenso parece ter-se instalado na sociedade portuguesa, ouvindo-se em uníssono um sonoro: “gostamos muito da ADSE!”

Na realidade, quer os adeptos mais fervorosos do Serviço Nacional de Saúde (SNS), quer os adeptos mais radicais das soluções de saúde de natureza privada, parecem estar rendidos à ADSE.

Mas porque é que queremos a ADSE se existe um SNS tão eficaz (como afirmam alguns) ou se temos soluções privadas tão eficientes (como dirão outros)?

Para melhor compreender esta questão, importa analisar com algum detalhe as principais componentes do modelo de ADSE que caracterizava o sistema até há poucos anos atrás. Em primeiro lugar, a ADSE tinha uma natureza obrigatória, abrangendo apenas o universo dos servidores do Estado (funcionários públicos e trabalhadores em funções públicas), aposentados, pensionistas e respetivos familiares, que eram obrigados a estar inscritos no sistema e a contribuir para o mesmo (não sendo possível a saída do sistema). Um segundo aspeto correspondia à existência de uma taxa de desconto igual para todos, traduzida numa percentagem fixa do salário do trabalhador ou da pensão do aposentado/pensionista (ou seja, a contribuição não dependia da idade/risco do beneficiário). Uma terceira característica que distinguia este sistema de muitos outros prendia-se com o facto de assegurar aos beneficiários uma cobertura ilimitada dos riscos de saúde.

Apesar de cada uma destas três características poderem ser individualmente criticáveis, o certo é que foi a conjugação simultânea das mesmas que permitiu, durante muitos anos, manter o sistema em equilíbrio. Na realidade, a obrigatoriedade de adesão ao sistema, num contexto de crescimento do universo dos funcionários e dos trabalhadores em funções públicas, permitiu compensar a manutenção de uma taxa única de desconto (e independente do risco), assegurando uma cobertura de saúde ilimitada.

A capacidade de assegurar esta “quadratura do círculo” começou a ser colocada em causa quando o crescimento do universo dos titulares contribuintes desacelerou, por via das restrições impostas às admissões na administração pública, fenómeno este que, associado ao aumento da longevidade da população portuguesa, conduziu a um crescimento acentuado da idade média dos beneficiários (atualmente nos 59 anos).

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Paralelamente, foram tomadas duas medidas que, conjugadas, debilitaram o equilíbrio de “fio da navalha” existente. Com efeito, ao aumentar a taxa única de desconto aplicada aos titulares (de 1,5% para 3,5%) possibilitando, simultaneamente, que quem quisesse abandonar o sistema o pudesse fazer, abriu-se a porta a que o denominado fenómeno de seleção adversa entrasse em ação.

Na realidade, com a adoção destas medidas conjugadas, os beneficiários que viram os custos de manutenção no sistema elevarem-se de forma significativa começaram a questionar a relação custo/benefício da ADSE, fazendo com que muitos deles, em particular os mais novos, desistissem do sistema ou não o integrassem. Ou seja, abriu-se a porta para que muitos daqueles que consideraram que o custo a suportar seria muito superior ao benefício estimado – “os de menor sinistralidade potencial” desistissem (ou não aderissem) ao sistema, enquanto aqueles que consideraram que o custo a suportar inferior ao benefício estimado – “os de maior sinistralidade potencial” – se mantivessem (ou aderissem) ao sistema.

Paralelamente, tem-se assistido a um crescimento significativo do número de beneficiários isentos (que se situariam próximo dos 30.000 em 2013, passando para quase 55.000 em 2017), cujos encargos para a ADSE, conforme refere o Tribunal de Contas (Relatório de Auditoria n.º 22/2019), atingiram em 2017 os 32 M€ (+132% dos que os 14 M€ verificados em 2013), sem que exista qualquer compensação pelos mesmos (em bom rigor, e por questões de equidade, essa compensação não deve resultar de transferências do Estado).

Por fim, destaca-se o crescimento da despesa associada à prestação dos cuidados de saúde, em particular no regime convencionado, onde é cada vez mais difícil manter os baixos tarifários que ajudavam a conter os custos (despesa média por beneficiário no regime convencionado cresceu 29,6% entre 2015 e 2016).

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Em resumo, a configuração da ADSE assente num universo relativamente jovem de titulares obrigatoriamente vinculados ao sistema permitiu, durante muitos anos, assegurar coberturas ilimitadas cobrando uma taxa única de desconto e relativamente modesta.

Mais recentemente, o envelhecimento do universo dos titulares e beneficiários, num quadro de manutenção dos níveis de cobertura ilimitados e de uma taxa única de desconto (i.e., independente do nível de risco do beneficiário), obrigou à subida dessa mesma taxa, o que, associado ao fim do regime de obrigatoriedade de adesão, abriu a porta ao denominado fenómeno de seleção adversa que conduzirá, tendencialmente, a que permaneçam no sistema apenas os beneficiários “de maior sinistralidade potencial”.

Em face disto, parece claro que estão criadas as condições para que, a médio prazo, a ADSE seja financeiramente insustentável. Aliás, a este propósito, o Tribunal de Contas (Relatório de Auditoria n.º 22/2019) refere que “se nada for feito, a administração da ADSE apresenta um défice anual já a partir de 2020” e, em “2026, prevê-se que a ADSE tenha que recorrer a outras fontes de financiamento”. O Tribunal de Contas acrescenta ainda que “o alargamento da base de quotizados a um universo de 100 mil novos titulares, com os respetivos agregados familiares, apesar de contribuir positivamente para os resultados da ADSE, não alteraria de forma relevante as perspetivas de sustentabilidade”.

Numa universidade norte-americana muito conhecida, é dito aos caloiros que a vida deles, a partir da entrada na universidade, pode-se dividir em três atividades: trabalhar para ter boas notas; ter uma vida social ativa; e dormir. Perante este quadro de possibilidades, os caloiros são ainda alertados para o seguinte aspeto: “Aquilo que será exigido durante o curso só lhes permitirá conciliar dois dos três objetivos.” 

Tal como na prestigiada universidade norte-americana, também na ADSE não é possível conciliar o “melhor de tudo” (i.e., regime de adesão livre; taxa de quotização única e independente do nível de risco; e coberturas ilimitadas).

Perante isto, será que o “consenso nacional” em torno da ADSE se vai manter?

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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