O tempo deles

Educar é saber deixar que as crianças vivam o seu tempo para errar, não é procurar adiar a realidade, na esperança de evitar o erro.

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Laurent Peignault/Unsplash

Chamam-lhes “pais helicópteros”. Vivem a sobrevoar os filhos, a controlar os seus passos, a gerir as suas relações, a vigiar-lhes o caminho. Cerceiam-lhes a autonomia, impedem-nos de desenvolver competências sociais, comem-lhes o tempo de crescer. E o céu está cheio de helicópteros. Claro que há gradações para estes comportamentos, desde o “apocalypse now” dos pais superprotectores até aos pais a jacto que se multiplicam em voos rasantes, mas a figura dos pais vigilantes parece ser uma constante da sociedade urbana portuguesa.

É possível que muitos não se sintam reflectidos nesta imagem, até porque o consenso social se vai moldando ao que é considerado aceitável para a maioria. Em 1829, Silva Porto atravessava o Atlântico, do Porto para o Brasil, para encontrar trabalho. Tinha 12 anos e não era especialmente precoce. Hoje, sem querer acabar com essa fantástica conquista que é a eterna adolescência, já não era mau se alguns pais deixassem os filhos atravessar a rua, mas muitos acham que é normal levá-los à escola, mesmo quando já estão no 12.º ano.

Em 2015, um estudo internacional comparou a mobilidade infantil em 16 países e colocou Portugal no fim da lista como um dos países em que os pais dão menos liberdade às crianças. Na altura, Carlos Neto, professor da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, um dos coordenadores do estudo, alertava: “Estamos numa situação caótica. As nossas crianças estão fechadas, amarradas, em casa, não têm liberdade de acção, não vão a pé para a escola, não brincam na rua. Estamos a viver uma situação insustentável, o que designo por sedentarismo infantil.”

Não consta que tenha melhorado, até porque os recursos de vigilância aumentaram. Num recente artigo no PÚBLICO, Cristiana Faria Moreira dava conta das crianças de nove anos de um colégio privado que são vigiadas pelos seus pais através de aplicações com “mapas digitais” como o Google Maps que lhes permitem saber onde estão a qualquer momento. As crianças e, obviamente os progenitores, acham que ter este “big brother” na família é normal. 

A tara deste momento, retratada por Natália Faria num outro artigo, é a dos grupos de pais no WhatsApp. Através desta aplicação, que em outras geografias tem estado associada a problemas graves de desinformação, os pais vão-se coordenando e controlando a vida escolar dos seus filhos. O problema não é, obviamente, que eles tenham uma relação com a escola, o problema é que essa relação seja demasiado intensa ao ponto de perturbar o funcionamento do estabelecimento de ensino e que, no seu afã, os pais ignorem que os filhos também têm direito a criar espaços e relações a que podem chamar suas.

Como sublinha o psiquiatra Daniel Sampaio nesse artigo, “artifícios como o ir perguntar aos outros pais quais são os TPC vai contra a autonomia e a responsabilização dos filhos. A atitude de superprotecção dos filhos é uma característica muito presente nos países da Europa do Sul, como se os pais estivessem que estar sempre a ‘atapetar’ o chão que os filhos pisam, esquecendo-se que a educação para a autonomia e contra o medo é fundamental”.

Um estudo feito pela Escola Superior de Educação de Lisboa reforça a ideia. Filmados numa sala, pais e filhos muito pequenos eram convidados a desenvolver uma actividade em conjunto, podia ser fazer um boneco, um quadro... O objectivo era perceber como é que os adultos lidam com as crianças em actividades colaborativas. O resultado mostrou que os educadores portugueses incentivam a criança a criar sozinha (aconteceu com 21 crianças, em 50), os pais ajudam-na (18 em 45), mas a maioria substitui-a (25 em 45) e faz o projecto por ela. O mesmo vai acontecer mais tarde com os trabalhos de casa.

Não, não podemos, não, não devemos viver por elas. Educar é saber deixar que as crianças vivam o seu tempo para errar, não é procurar adiar a realidade, na esperança de evitar o erro. E o paradoxo é que hoje, ao contrário do tempo de Silva Porto, quando a esperança de vida na Europa Ocidental rondava os 33 anos, temos em média muito mais tempo para viver, muito mais tempo para os acompanhar e ajudar. 

Muitos pais argumentarão que os tempos são hoje de maior insegurança e que, por essa razão, não deixam, por exemplo, os filhos andar na rua. A verdade é que Portugal é um dos países mais seguros da Europa e o que os pais estão a fazer é alinhar nas teses do deputado André Ventura, que acha que uma coisa é a realidade e “outra coisa é a percepção real e os números reais que as pessoas têm do ponto de vista da percepção e da existência”, ou seja, a ilusão.

Em vez de construir as suas estratégias educativas com base em medos irreais e transmitir esses receios à sociedade, talvez fosse melhor consciencializarem-se de que, em grande parte, o que os faz tremer é o inverno demográfico. Numa sociedade em que os filhos são um bem escasso, a tendência é protegê-los ao máximo. Foi assim com a sociedade chinesa, em que a política do filho único criou um exército de “pequenos imperadores”; é assim, mesmo que não se reflicta muito sobre isso, num dos países do mundo com uma das taxas de natalidade mais baixas.

Parece que foi Eugénio de Andrade que um dia disse: “A juventude não precisa de piedade, mas de verdade. Há muito jovem que me pede ajuda onde não há ajuda possível, pois ninguém pode viver por eles a sua própria vida, remontar às fontes do ser.” Sigamos o poeta, deixemo-los viver o seu tempo.

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