Ciência e Tecnologia em Portugal: os desafios do futuro

Impõe-se perguntar se não estaremos a formar doutores a mais. A resposta é um claro “Não”. O problema não está no excesso de oferta, mas sim na falta de procura.

Nas últimas cinco décadas, Portugal transformou-se, pela positiva, no que respeita à investigação científica e tecnológica. A visão de José Mariano Gago e o trabalho de tantos que com ele colaboraram revolucionaram, em poucas décadas, o panorama científico nacional. Um país onde praticamente não se fazia ciência transformou-se, em menos de meio século, num país onde numerosas universidades e institutos de investigação desenvolvem ciência e tecnologia (C&T) com qualidade internacional e impacto global.

Há 50 anos, ter um curso superior era um privilégio pouco comum, e eram praticamente inexistentes as formações mais avançadas, tais como mestrados ou doutoramentos. Em 1970, foram concedidos 60 doutoramentos em Portugal, um número que deve ser comparado com os cerca de 3000 doutoramentos que são concedidos no país em cada um dos anos mais recentes. Mas não é só na quantidade de cientistas que a ciência portuguesa de hoje se distingue da de há meio século. Nessa altura, qualquer jovem que quisesse fazer um doutoramento de qualidade teria, com elevada probabilidade, de o fazer numa universidade fora do país. Hoje, a qualidade dos doutoramentos feitos em Portugal não deve nada à dos doutoramentos feitos nas melhores universidades dos países mais desenvolvidos e o mesmo é verdade para muito trabalho de investigação feito em laboratórios e institutos portugueses.

Apesar destes desenvolvimentos positivos, nem tudo está bem na ciência em Portugal. Pelo contrário, existe uma profunda desadaptação entre a capacidade do sistema educativo para formar profissionais altamente qualificados, nomeadamente com o grau de doutoramento, e a capacidade do sistema económico para os absorver e empregar de forma útil. Em Portugal, o sistema de ensino superior público emprega cerca de 18.000 professores doutorados, a tempo inteiro. Se admitirmos que as carreiras académicas duram cerca de 36 anos, e que a substituição se faz a uma taxa aproximadamente constante, o sistema poderá admitir, em regime estacionário, cerca de 500 novos doutores em cada ano, dos cerca de 3000 que se formam no mesmo período de tempo. Na prática, o crónico subfinanciamento do sistema de ensino superior conduz a um número mais reduzido de novas contratações, insuficiente para assegurar a renovação.

Dada a instabilidade das políticas das agências de financiamento portuguesas e a incerteza que daí advém, a capacidade das outras instituições do sistema científico e tecnológico nacional para admitir investigadores de carreira é muito limitada e, em todo o caso, muito inferior à das instituições de ensino superior. Temos, assim, vários milhares de novos doutorados por ano que não poderão ser absorvidos pelas instituições de ensino superior, nem pelas outras instituições do sistema científico e tecnológico.

Impõe-se, então, perguntar se não estaremos a formar doutores a mais. A resposta a esta pergunta é um claro “Não”. Formamos, em cada ano, cerca de 0.8 doutores por cada 1000 adultos com idades entre os 25 e os 34 anos, o que corresponde a menos de metade do valor de países como a Holanda, a Suécia, a Alemanha ou a Dinamarca. O problema não está no excesso de oferta, mas sim na falta de procura, e esta falta deve-se tanto ao sector público como ao sector privado.

De acordo com as últimas estatísticas, Portugal investe em C&T 1,33% do PIB, um valor que deve ser comparado com os 3% que a Europa definiu como objectivo para 2020. Este investimento é dividido, em partes aproximadamente iguais, entre o sistema público e o sistema privado. Porém, esta estimativa, embora baixa, é de facto muito optimista. O investimento público, que é quase totalmente devido às instituições de ensino superior, usa, na realidade, parte deste montante para cobrir o crónico deficit de financiamento do sector de ensino. A título de exemplo, no Instituto Superior Técnico, cada aluno custa cerca de 7000 euros por ano, dos quais cerca de 1000 são pagos pelo próprio estudante (ou pelos serviços de apoio social, no caso dos alunos carenciados), e 4500 euros pelo Orçamento do Estado. A diferença, cerca de 1500 euros por aluno, que corresponde a 16% do orçamento do Técnico, acaba por ser subsidiada por fundos que deveriam ser usados exclusivamente para investigação e desenvolvimento mas são, na prática, também usados para suportar o ensino.

No que respeita ao sector privado, a contabilização dos valores investidos em C&T é também muito optimista, sendo consideradas muitas despesas que, na realidade, pouco contribuem para a investigação e o desenvolvimento. Na prática, o número de investigadores, com formação avançada, empregues pelo sector privado é muito limitado e tem pouco impacto global, apesar das estatísticas oficiais (relatório IPCTN17, de Direcção Geral de Estatísticas da Educação e Ciência) indicarem que é cerca de um terço do total.

Por tudo isto é fundamental duplicar o investimento, público e privado, em C&T. Mas esse é um processo que demorará vários anos e, no entretanto, o que fazer para aproveitar de forma produtiva os excelentes recursos humanos, com formação avançada, que o nosso sistema de ensino superior está a formar? Existem duas medidas óbvias a tomar, uma no sector público, outra no sector privado.

No que respeita ao sector público, quase 15 anos depois da reforma de Bolonha, (que criou um novo enquadramento, a nível Europeu, para as licenciaturas, mestrados e doutoramentos) o Estado ainda não reconhece estes graus nas suas carreiras, com excepção da carreira académica e da carreira de investigação, que representam menos de 3% do emprego público. Urge rever este estado de coisas, permitindo que jovens com mestrados e doutoramentos vejam essas habilitações devidamente reconhecidas pelo Estado, e contribuam de forma decisiva para uma administração pública mais educada, competente e produtiva.

Quanto ao sector privado, é urgente criar legislação que incentive, ou mesmo que obrigue, as empresas e investir uma maior parte dos seus lucros em C&T. Outros países têm adoptado diversos métodos que se têm revelado eficazes, embora a todos eles possam ser apontadas vantagens e desvantagens. Neste aspecto particular, um bom exemplo é o Brasil, onde a legislação impõe o investimento em C&T de 1% da receita bruta obtida na produção dos campos de petróleo e gás, resultando numa fonte de financiamento para o sistema científico com enorme impacto.

Se não tomarmos, a muito curto prazo, medidas adequadas, continuaremos a subaproveitar os nossos recursos humanos mais altamente qualificados, muitos dos quais se vêem obrigados a emigrar para encontrar posições compatíveis com as suas habilitações. A ideia de que as instituições de ensino superior, os centros de investigação e os laboratórios colaborativos (associações privadas entre empresas e universidades, recentemente criadas) terão a capacidade financeira para absorver e usar, de forma útil, todos os jovens altamente qualificados que são formados pelas universidades é uma miragem, perigosa, enganadora e geradora de conflitos. Cabe à administração pública e às empresas valorizarem e utilizarem eficazmente as pessoas com formações avançadas que são, cada vez mais, indispensáveis à competitividade do país nos mais diversos sectores da economia.

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