Em Bento Rodrigues, uma enxurrada de lama arrastou a identidade colectiva

A abertura do nono festival Verão Azul, a decorrer até 2 de Novembro em Loulé, Faro e Lagos, faz-se com Mining Stories, de Silke Huysmans e Hannes Dereere, um espectáculo construído a partir de um desastre em Minas Gerais.

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TOM CALLEMIN

Silke Huysmans e Hannes Dereere estavam na Bélgica a pesquisar para uma nova criação a dois, tomando como coordenadas essenciais a memória colectiva e a eterna capacidade da História para se repetir uma e outra vez, quando tomaram conhecimento de um acidente numa barragem brasileira que continha resíduos tóxicos da mineradora Samarco e que os despejou, arrastados por uma lama destruidora, sobre as povoações nas proximidades. Apesar de o trágico episódio de Novembro de 2015 ter acontecido muito longe deles, na barragem do Fundão, em Bento Rodrigues, estado de Minas Gerais, e de pouco ter sido noticiado, os relatos da destruição foram chegando até Silke Huysmans. Nascida em Manaus, a artista belga viveu com a família em Mariana, cidade a 15 quilómetros do epicentro do desastre, e as pessoas com quem ainda mantinha contacto na região relataram-lhe tudo o que se estava a passar.

Foi então que os dois adaptaram ligeiramente o foco da sua investigação, tratando de realizar um levantamento de acidentes em explorações mineiras. “Descobrimos que há muitos acidentes semelhantes que aconteceram até nesta região, sempre com o mesmo padrão”, explica Hannes Dereere ao PÚBLICO. “O acidente acontece, as pessoas tentam não esquecer, mas acaba apagado da memória colectiva e volta a acontecer.” Esta consciência haveria de tornar-se determinante na construção do espectáculo Mining Stories, que esta quinta-feira abre, no Cine-Teatro Louletano, a nona edição do festival internacional de artes Verão Azul, a decorrer em Loulé, Faro e Lagos até 2 de Novembro. Assim como absolutamente essencial se revelaria o contacto com a dispendiosa campanha de relações públicas que a Samarco lançou pouco depois e que dizia assim: “É sempre bom olhar para todos os lados.”

Os anúncios da empresa mineira focavam-se na cooperação e na solidariedade pós-desastre tentando impor, desde logo, uma narrativa oficial para aquele episódio que desviava as atenções das suas responsabilidades. Silke e Hannes, no entanto, levaram o slogan à letra: “Foi exactamente o que fizemos – fomos falar com pessoas e recolher opiniões e perspectivas diferentes, integrando-as nesta peça.” E é assim que encontramos Huysmans em palco, com vários pedais de efeitos à sua frente, a partir dos quais dispara vozes de habitantes da região, de um economista, de um neurologista, de um padre, do prefeito de Mariana, vozes que vão engrossando os olhares sobre a questão.

Essa construção a partir das vozes alheias, reconhece Silke, é também a expressão da perspectiva dos criadores belgas, de alguém que “vive na Europa”. A evidência, explanada diante do público, de que qualquer história é uma narrativa fabricada por quem a conta. Mas esse facto, europeus a debruçarem-se sobre um acontecimento do quotidiano brasileiro, é também uma forma de forçar o reconhecimento de um laço menos visível entre os dois lados do Atlântico: “Nós importamos o ferro que eles têm de minerar e muitos bancos europeus são, na verdade, os investidores destas empresas de extracção mineira.”

Copy-paste

Num dos mais intensos e comoventes depoimentos de Mining Stories, ouvimos uma mulher dizer, desconsoladamente: “Perdemos tudo, perdemos a nossa identidade...” E essa é uma das questões determinantes abordadas pela peça. Afinal, em torno do desastre há muitas implicações económicas, materiais, sociais, políticas e mesmo identitárias que vêm à tona. Tomado pela terceira vaga da exploração mineira – antes do ferro, houve a caça ao ouro e aos diamantes –, o estado de Minas Gerais e os seus habitantes (mineiros) devem topónimos e gentílicos à actividade que, ainda hoje, se mantém como a principal fonte de emprego e o grande motor da economia da região.

Daí que subsista um conflito entre os interesses pessoais e colectivos, e os efeitos devastadores de uma inundação tão desmedida que deixou um sentimento de perda não apenas das “casas onde cresceram e construíram as suas vidas, mas também da comunidade”. Um pouco à imagem do que aconteceu em Portugal com a Aldeia da Luz (submergida pelas águas do Alqueva), também os habitantes de Bento Rodrigues esperam a construção de uma nova povoação, replicando o lugar onde viviam, a nove quilómetros do local original. “É muito estranho fazer um copy-paste de uma vila que a reproduz noutro lugar”, dizem os artistas, interrogando o sentido de recriar aquilo que se perdeu irreparavelmente.

A nona edição do Verão Azul, sob o signo do Antropoceno, arranca esta quinta-feira com Mining Stories e com a exposição de André Príncipe Expats (Associação 289, Faro), prosseguindo no fim-de-semana com concertos de Niño de Elche, Ricardo J. Martins e Russa, uma performance de Paulina Szczesna, um percurso sonoro de Cátia Pinheiro, uma peça de teatro de Raquel André e “um mecanismo crítico” de promoção do debate público dirigido pelo colectivo artístico chileno Mil M2.

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