Descaracterização da Aldeia da Luz já começou

Foto
A nova aldeia reproduz a velha aldeia Carla B. Ribeiro/PUBLICO.PT

Quando hoje o primeiro-ministro Durão Barroso inaugurar a nova Aldeia da Luz, no concelho de Mourão, estará a avalizar uma série de atropelos à lei, muitos deles feitos com a conivência da Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva (EDIA), responsável pela reconstrução do aglomerado populacional.

A descaracterização das casas recém-construídas, autorizada pela EDIA ou feita pelos habitantes por sua conta e risco, à revelia do respectivo plano de pormenor - que tem força legal - leva o arquitecto responsável pelo projecto, João Figueira, a falar em "abuso" e em "oportunismo".

Quem percorre a parte nascente da aldeia repara que as balaustradas, feitas de elementos pré-fabricados, irrompem em terraços construídos nas últimas semanas, apesar de o projecto elaborado para a nova aldeia os proibir. Vários muros de quintais estão a ser deitados abaixo para se construírem outros mais altos, encimados por vedações de ferro, ultrapassando o metro e meio de altura máxima que o projecto determina. Portas de madeira que deviam estar pintadas foram envernizadas ou até substituídas por portas de alumínio. No lugar dos estores, proibidos na nova aldeia, surgem portadas no exterior das janelas, quando o projecto as colocou no interior.

Puxadores e maçanetas de portas da rua foram substituídos por outros de maior dimensão, com profusão de dourados e niquelados. Os mármores de fora da região substituem os barrões pintados, uma das características mais acentuadas da típica casa alentejana. Até o xisto de Mourão foi preterido, nalguns casos, pelo de outras proveniências. Nas casas comerciais, os toldos de plástico inserindo publicidade desrespeitam o plano de pormenor, que previa uma certa homogeneidade neste tipo de equipamentos.

Mas as situações mais graves dizem respeito às novas construções que ocupam o espaço público. A calçada de um arruamento foi parcialmente ocupada por um quintal particular. Noutro local, um habitante resolveu erguer um anexo à sua casa também em terreno público.

Para que estes terrenos tivessem entrado na posse de particulares seria necessário realizar uma consulta pública, o que não aconteceu.

Muros, alpendres e barracões florescem em dezenas de habitações. "Trata-se de uma clara situação de abuso", salienta João Figueira, acrescentando que "os sinais que começam a revelar-se são preocupantes".

O arquitecto autor do projecto questiona os critérios seguidos pela EDIA, ao autorizar as sistemáticas alterações feitas nas casas a pedido dos moradores. "Cedeu-se tanto para quê?", pergunta. "Depois de tanta discussão pública - realizada durante a face de elaboração do projecto -, durante a qual as pessoas que reclamaram foram sempre atendidas, e os problemas superados, assistimos agora à ascensão do oportunismo" lamenta. É que que foi refeito por via destas reclamações está agora a sofrer novas remodelações, desta vez a cargo dos moradores.

A nova aldeia reproduz a velha aldeia. Os que tinham estores têm agora portadas. Os que tinham portas de alumínio não se conformam com uma porta de madeira pintada, preferindo invernos-lá. Os que tinham balaustradas, azulejos ou mosaicos voltam a repetir o modelo.

Uma das explicações para o que se está a passar pode relacionar-se com uma tentativa de repor o estatuto social existente no velho aglomerado, que irá ser submerso pelas águas da barragem de Alqueva. A melhoria substancial das novas habitações destinadas aos habitantes mais carenciados relativamente ás antigas suscitou algum mal-estar no estrato mais desafogado da comunidade. Ou seja, deu-se uma perda de estatuto de algumas famílias e a consequente valorização de outras com menos condições económicas. "Os mais abastados abusam e os mais humildes respeitam", observa o arquitecto responsável pelo elaboração do projecto da nova aldeia.

Um natural da Aldeia da Luz a residir há muitos anos em Lisboa insurge-se contra "a anarquia que já começa a reinar" na novo aglomerado. Diz que "a aldeia entrou em digestão", criticando a "promiscuidade e o lixassem" das autoridades locais, ao contemporizar com os atropelos à lei e ao plano de pormenor da nova aldeia, que tem regras específicas. "Seguimos recomendações prevista para os centros históricos e as que estão sugeridas nas cartas da UNESCO relativas ao património", recorda João Figueira.

O projectista diz-se ultrapassado pelos acontecimentos, falando em "falta de apoio das autoridades locais" e na conivência da EDIA, ao considerar as exigências dos arquitectos "manutenções".

Durão Barroso vai inaugurar um aglomerado populacional que deixou de corresponder ao projecto elaborado com a participação e a aprovação de várias entidades públicas - incluído as autarquias e a esmagadora maioria da população.

A RTP transmite hoje os seus dois principais noticiários a partir da Aldeia da Luz - primeiro, às o Jornal da Tarde, conduzido por Ana Cardoso Fonseca; depois, às 20h00, o Telejornal, com José Alberto Carvalho.

Sugerir correcção
Comentar