Costa recorre à PGR e tenta controlar danos nos negócios de familiares com o Estado

António Costa segura para já o secretário de Estado. Primeiro-ministro quer que PGR clarifique interpretação da lei para salvaguardar outros casos no Governo. Norma da lei vai deixar de estar em vigor na próxima legislatura por acordo de PS, PSD, PCP e BE.

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Antes que a polémica alastre a outros membros do executivo António Costa decidiu pedir um parecer à PGR. Nuno Ferreira Santos

Antes que a polémica alastre a outros membros do Executivo, o Governo decidiu pedir à Procuradoria-Geral da República que esclareça se a legislação actualmente em vigor, sobre as incompatibilidades de titulares de cargos políticos, impõe como sanção a demissão de governantes sempre que um familiar fizer negócios com entidades públicas. Para o Governo, a demissão não pode ser uma consequência, uma vez que ninguém pode ser sancionado por actos em que não está envolvido e porque uma decisão deste nível teria uma grande “complexidade institucional e social”.

O assunto precipitou-se durante o dia de ontem. Depois de quatro dias a lidar com o caso das golas antifumo, o executivo recebeu novo golpe, com a notícia de que a empresa de Nuno Neves, filho do secretário de Estado da Protecção Civil, Artur Neves, tinha celebrado contratos – dois por concurso público e um por ajuste directo – com entidades públicas e que isso seria proibido por lei e sancionado com demissão, escrevia o Observador.

A nova polémica obrigou o Governo a reagir ao mais alto nível, para evitar contágio a outros membros do Governo. Num comunicado enviado ao final da tarde para as redacções, o gabinete do primeiro-ministro fazia saber que considerava que a interpretação da lei que defendia a demissão imediata de um governante por negócios de empresas de familiares com entidades públicas, mesmo que estas nada tivessem a ver com o titular de cargo político, “ultrapassa largamente, no seu âmbito e consequências, o que tem sido a prática corrente ao longo dos anos”.

Outros casos

Pretende o Governo com este recurso à PGR salvaguardar outros casos. Nos últimos meses soube-se que Eduardo Paz Ferreira, marido da ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, tinha colaborações regulares com o Governo, nomeadamente com o Ministério da Administração Interna, e nas redes sociais começaram a surgir outros potenciais casos, como o do ministro das Infra-estruturas e Habitação, Pedro Nuno Santos, cujo pai tem uma empresa de máquinas há mais de quatro décadas e que terá celebrado contratos com institutos públicos, independentes da administração central, já desde que o filho é governante, e o da ministra da Cultura, Graça Fonseca, cujo pai tem prestado serviços a entidades públicas. 

A lei em vigor vem desde 1995 e nunca tinha sido ainda suscitada esta dúvida de negócios de familiares com entidades que não são da tutela do titular de cargo político. Ao que foi possível apurar, houve um caso, noticiado pelo PÚBLICO em Maio de 2018, em que o Tribunal de Contas recusou o visto a um contrato da Câmara de Penamacor com uma empresa do pai e da irmã de uma vereadora daquele município, havendo aqui uma relação directa. De resto, o Tribunal Constitucional apenas se pronunciou sobre os casos do ministro-adjunto, Siza Vieira, e do secretário de Estado do Desporto, João Paulo Rebelo, mas sobre outras normas da lei, que dizem respeito ao facto de estes governantes deterem à data empresas quando por lei têm de estar em regime de exclusividade. Ambos os casos foram arquivados.

No comunicado, o gabinete do primeiro-ministro dá os argumentos para o facto de considerar que a demissão como sanção para esta situação não pode ser posta em causa. “Não pode deixar de suscitar dúvidas como alguém possa ser responsabilizado, ética ou legalmente, por actos de entidades sobre as quais não detém qualquer poder de controlo e que entre si contratam nos termos das regras de contratação pública, sem que neles tenha tido a menor intervenção”, lê-se. Para clarificar “o alcance e consequência destes impedimentos”, o primeiro-ministro fez um pedido de parecer ao Conselho Consultivo da PGR, que estabelecerá a interpretação da lei que se aplica.

Além deste argumento, o Governo lança para cima da mesa outra questão: a dificuldade de aplicação da legislação em vigor. Uma vez que o impedimento abarca todos os cargos políticos, desde o Presidente da República ao autarca, "facilmente se compreende a complexidade institucional e social da interpretação literal que vem sendo difundida”. 

Lei futura permite negócios de familiares

Para a legislação futura, esta é uma interpretação que não levanta dúvidas. O Parlamento, com os votos do PS, PSD, PCP e BE, aprovou alterações ao regime das incompatibilidades, que passa a permitir que familiares dos governantes continuem a exercer a sua actividade profissional. A redacção da nova lei permite que haja contratos com familiares, mas impõe um reforço da transparência na publicitação das relações familiares nos processos de contratação pública: os contratos desta natureza devem ser acompanhados da descrição dessa relação quando forem publicados no portal online dos contratos públicos. A nova lei prevê ainda a possibilidade de o titular de cargo político alienar ou suspender a participação na sociedade.

A interpretação de que este impedimento tinha de ser clarificado foi defendida pelos socialistas quando, no Parlamento, foram debatidas as alterações ao regime jurídico de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, na Comissão da Transparência. A proposta até começou por ser do Bloco de Esquerda e acabaria por ser adoptada, com algumas alterações. Pedro Delgado Alves, deputado do PS que esteve com este dossier, considera que não se pode aplicar directamente a sanção da demissão, uma vez que ninguém pode ser sancionado por actos que não comete. “Se é uma sociedade do próprio a contratar, a perda do mandato é óbvia. Agora, se for uma sociedade de um descendente, como é o caso, levanta-se um problema se se avançar para a leitura literal da lei, porque o titular do cargo não tem controlo sobre nada, é algo decidido por um terceiro.” 

Ora, continua o deputado, “um caso destes não pode gerar a aplicação de uma sanção a quem não praticou nenhum acto, nem pode evitar que terceiros o façam. Seria até inconstitucional estar a prever uma sanção para alguém que não tem controlo nenhum sobre a actividade de um terceiro ou até de um sócio de um terceiro”, diz ao PÚBLICO.

Já a Associação Transparência e Integridade não tem dúvidas da aplicação em sentido contrário, ou seja, que a única leitura possível é a demissão, no caso de Artur Neves, por causa dos negócios do filho. “A lei que vai vigorar na próxima legislatura permite isto [que familiares de políticos tenham negócios com entidades públicas] que hoje não é permitido, mas a resposta é: hoje não é permitido, e lei é lei. Nós vivemos num Estado de direito em que a lei é imperativa, ou então cada cidadão ganha o direito de interpretar a lei como entender, como, nomeadamente, leis de impostos que não considera justas”, disse João Paulo Batalha à TSF. 

Certo é que Artur Neves vai manter-se em funções, pelo menos enquanto a polémica se mantiver neste assunto. Ontem, o secretário de Estado enviou um comunicado afirmando que não se demitia e explicava que não teve “qualquer influência” nos negócios do filho. “Não tenho qualquer participação na referida empresa nem intervenção na sua actividade. Não tive qualquer influência nem estabeleci qualquer contacto, nem o meu filho alguma vez invocou o seu grau de parentesco, de que pudesse resultar qualquer expectativa de favorecimento pessoal”, lê-se no texto. Resta saber se resistirá a mais notícias que o envolvam.

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