A norma da lei que pressiona o secretário de Estado vai deixar de existir

Negócios de familiares com entidades públicas vão ser permitidos na próxima legislatura. Actualmente são proibidos, mas demissão dificilmente poderá ser aplicada, acredita deputado socialista.

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Nuno Ferreira Santos

Todos os titulares de cargos políticos, sejam eles eleitos ou não eleitos, têm de respeitar as regras do regime jurídico de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos. E só neste Governo, o Tribunal Constitucional já teve de avaliar incompatibilidades de dois governantes, e nos dois casos, quer o ministro Siza Vieira,quer o secretário de Estado do Desporto, João Paulo Rebelo, mantiveram-se em funções. Agora, é o secretário de Estado da Protecção Civil a estar debaixo dos holofotes por causa de uma norma legal que foi alterada, mas que só entra em vigor na próxima legislatura. Com a nova lei não haveria problema, com a antiga, depende da leitura que o Constitucional poderia fazer. Mas a verdade é que raros foram os casos em que esta lei foi respeitada ou sequer avaliada

A lei, que está de novo a ser debatida nesta terça-feira na sequência da notícia do Observador que conta que Nuno Neves, filho do secretário de Estado da Protecção Civil, José Artur Neves, fez contratos com entidades públicas já com o pai como governante, impõe a exclusividade profissional a estes políticos e impede que estes detenham empresas “numa percentagem superior a 10%”, ficando “impedidas de participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços, no exercício de actividade de comércio ou indústria, em contratos com o Estado e demais pessoas colectivas públicas”.

Este impedimento é alargado aos familiares em linha recta, ascendentes e descendentes em qualquer grau e aos familiares “colaterais até ao 2º grau”. No caso, pela leitura literal da lei, o filho de Artur Neves estaria impedido de, através da sua empresa Zerca Lda, da qual detém 20%, fazer qualquer contrato com entidades públicas, sem excepção, desde juntas de freguesia a universidades, câmaras municipais ou entidades da administração central do Estado, independentemente de estas terem qualquer relação com o cargo ocupado pelo pai.

No entanto, a lei actualmente em vigor fala apenas em “concursos públicos”, deixando de fora os casos que podem ser mais problemáticos de ajustes directos e consultas a entidades. Ou seja, pela leitura literal da lei, dois dos três contratos da empresa da qual é sócio minoritário o filho de Artur Neves poderiam levantar problemas por terem sido por concurso público, o de 722 mil euros e de 1,4 milhões de euros com a Universidade do Porto e com a Câmara de Vila Franca de Xira, respectivamente. O terceiro, por ajuste directo no valor de 14,6 mil euros com a mesma universidade, nem entraria no radar.

É aqui que entra a dúvida: havendo este impedimento, a sanção seria imediatamente a prevista na mesma lei, ou seja, a demissão do governante por actos praticados pelo filho? Pedro Delgado Alves, deputado do PS que esteve com este dossier, considera que não. O Artigo 10.º da lei das incompatibilidades prevê a sanção da demissão para todos os impedimentos, seja nos casos dos negócios dos titulares de cargos políticos seja nos casos de negócios de familiares, contudo, nem sempre a aplicação da sanção pelos tribunais (no caso o Tribunal Constitucional) é directa, como não foi nos dois casos que já avaliou.

Para Delgado Alves, também neste caso não pode ser aplicada a pena de demissão, uma vez que ninguém pode ser sancionado por actos que não comete. “Se é uma sociedade do próprio a contratar, a perda do mandato é óbvia. Agora se for uma sociedade de um descendente, como é o caso, levanta-se um problema se se avançar para leitura literal da lei, porque o titular do cargo não tem controlo sobre nada, é algo decidido por um terceiro.” Ora, continua o deputado, “um caso destes não pode gerar a aplicação de uma sanção a quem não praticou nenhum acto, nem pode evitar que terceiros o façam. Seria até inconstitucional estar a prever uma sanção para alguém que não tem controlo nenhum sobre a actividade de um terceiro ou até de um sócio de um terceiro”, diz ao PÚBLICO.

Este impedimento, de fornecer qualquer bem ou serviço, mesmo que por concurso público e a qualquer entidade pública, foi debatido nesta legislatura na célebre comissão da transparência, que aprovou uma alteração à legislação, que só vai entrar em vigor na próxima legislatura e que aguarda ainda a publicação depois de ter sido promulgada pelo Presidente da República. Com excepção do CDS, que votou contra, e do PAN, que se absteve, todos os partidos, PSD, PS, PCP e BE votaram a favor na votação final global da nova legislação.

A redacção da nova lei permite que haja contratos com familiares, mas impõe um reforço da transparência na publicitação das relações familiares nos processos de contratação pública: os contratos celebrados pelas entidades públicas com empresas de familiares de políticos e altos dirigentes públicos devem ser acompanhados da descrição dessa relação quando forem publicadas no portal online dos contratos públicos. A nova lei prevê ainda a possibilidade de o titular de cargo político alienar ou suspender a participação na sociedade.

O PSD chegou a propor que os concursos fossem uma excepção a este impedimento: ou seja, que os familiares directos pudessem entrar nos concursos, estariam sim impedidos de celebrar contratos por ajuste directo ou por consulta a entidades. Isto porque, defendiam os sociais-democratas, seria uma maneira de credibilizar os concursos públicos e por outro lado não retirar por completo o direito de os familiares de titulares de cargos políticos poderem ter relações com entidades públicas e de assim exercerem as suas profissões ou manterem os seus negócios.

Só com este Governo, esta lei já serviu para avaliar dois casos e nos dois o Tribunal Constitucional não se decidiu pela aplicação da pena máxima prevista, a demissão dos governantes.

O primeiro caso a ser conhecido foi o do ministro adjunto Pedro Siza Vieira, que criou uma empresa imobiliária em sociedade com a mulher, um dia antes de ter tomado posse. O ministro esteve durante dois meses nesta situação que chegou a ser avaliada pelo Tribunal Constitucional. Os juízes decidiram arquivar o caso, uma vez que o cargo já não existia. Siza Vieira tinha deixado de ser ministro adjunto e passou a ser adjunto e da Economia. 

O segundo caso a ser avaliado foi o do secretário de Estado do Desporto, João Paulo Rebelo, que durante 22 meses acumulou a função com a gerência de uma empresa familiar de produção de mirtilos. A decisão do Constitucional, que não foi pacífica, foi a de arquivar o processo, uma vez que a situação de incompatibilidade tinha sido entretanto sanada. O governante alegava que considerava que a lei era idêntica para o cargo de deputado que desempenhava antes de ir para o Governo, cargo que lhe permitia a acumulação, com o de governante, que impõe exclusividade de funções.

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