Contratos com o Estado de pais, filhos e cônjuges de governantes são nulos, dizem constitucionalistas

A sanção para esta violação ao regime das incompatibilidades em vigor é a declaração de nulidade do contrato, afirmam Jorge Bacelar Gouveia e Pedro Bacelar de Vasconcelos.

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"O Governo está num grande sarilho", diz Bacelar Gouveia Rui Gaudêncio

A Lei das Incompatibilidades de Titulares de Cargos Políticos em vigor é clara: de acordo com o artigo 8.º, as empresas em que o cônjuge de um titular de cargo político, seus ascendentes e descendentes em qualquer grau e os primos até ao segundo grau tenham mais de 10% do capital estão impedidas de participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços em contratos com o Estado e outras pessoas colectivas. E a sanção para o incumprimento desta norma, prevista no artigo 14.º da mesma lei, é ainda mais taxativa: a infracção ao artigo 8.º “determina a nulidade dos actos praticados”. É isso que confirmam ao PÚBLICO dois constitucionalistas, Jorge Bacelar Gouveia, ex-deputado do PSD, e Pedro Bacelar de Vasconcelos, deputado do PS e presidente da Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias.

“Não se pode sancionar alguém por um acto que não praticou, ainda que politicamente o tema seja muito controverso”, afirma Jorge Bacelar Gouveia. Por isso, a sanção aplicável, acrescenta, “não é a demissão do governante nestes casos, pois não violou nada, mas do seu familiar que celebrou contratos com o Estado”. Neste caso, os contratos são nulos e de nenhum efeito, tenham tido origem num concurso público, tenham sido feitos por ajuste directo, defende ainda.

Pedro Bacelar de Vasconcelos considera também que a nulidade do contrato é o efeito legal da contratação feita ao arrepio daquela norma legal, e que “é ao Ministério Público que cabe determinar a nulidade dos actos públicos, pois é a ele que compete a defesa do princípio da legalidade”. Para este deputado e professor universitário, a iniciativa de pedir a nulidade também pode ser “de outras pessoas ou entidades que se sintam prejudicadas” com o contrato em causa, ou seja, eventuais concorrentes que tenham sido preteridos a favor dos familiares dos políticos.

Bacelar de Vasconcelos entende que a lei é clara, mas ressalva que “a interpretação da lei não se faz apenas com a leitura do preceito legal, há sempre outros preceitos que concorrem, limitam, alargam, estendem ou condicionam” a sua aplicação, pelo que um parecer definitivo exige uma apreciação mais apurada que afirma não ter feito para estes casos.

O facto de a lei ter sido alterada pela Comissão da Transparência e de o novo diploma já ter sido mesmo publicado no Diário da República não altera as situações que têm estado a ser divulgadas, como a celebração de contratos com o Estado por uma empresa do filho do secretário de Estado da Protecção Civil, do pai do ministro das Infra-estruturas ou do marido da ministra da Justiça. E por duas razões, como explica Bacelar Gouveia: primeiro, porque se aplica em lei em vigor à data dos factos, ou seja, a Lei 64/93. E, segundo, porque, não se trata de um preceito penal, ao qual teria de se aplicar a norma mais favorável, mas de um preceito administrativo.

“O Governo está metido num grande sarilho”, conclui o professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa, ex-deputado do PSD, para quem a questão não é apenas jurídica, mas sobretudo política.

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