Mitos e narrativas sobre a escolha do presidente da Comissão

Na imprensa portuguesa têm-se acumulado certos equívocos, muito por força de uma sobrevalorização do papel de António Costa.

1. Na sequência das eleições europeias, chegou o tempo das escolhas para os “postos-chave” da governação e representação da União Europeia. A realização das eleições abre um ciclo político de negociações com vista à designação dos titulares dos mais altos cargos europeus, mesmo de alguns que, em rigor, não dependem da composição do Parlamento Europeu (presidente do Conselho Europeu e presidente do BCE). As negociações são altamente complexas, obrigando à ponderação concomitante do equilíbrio geográfico, de família política e de género e até à interferência de algumas ambições ou circunstâncias nacionais (de um ou outro Estado) ou até pessoais (de um ou outro dirigente nacional ou europeu). Na imprensa portuguesa, mesmo em alguma opinião mais especializada e conhecedora, têm-se acumulado certos equívocos, muito por força de uma sobrevalorização – algo patrioteira – do papel de António Costa e, em especial, da versão e da percepção que, em declarações várias, ele tem veiculado.

2. O primeiro mito que tem feito curso entre nós é o da criação de uma “geringonça europeia”, supostamente “exportada” para Europa pelo PS. Quando se trata de política internacional – e a política europeia, a despeito de estar muito mais integrada que a diplomacia tradicional, é ainda e primacialmente diplomacia –, convém olhar para os factos e as relações sem paixões e sem estados de alma. O que, diga-se de passagem, não implica pôr ao largo as convicções; mas importa decerto a posse de doses substanciais de racionalidade e de realismo. Pois bem, para haver uma “geringonça”, teria de haver uma maioria parlamentar. Para ser uma maioria parlamentar de esquerda, só poderia ser constituída pelos socialistas (Grupo S&D), pelos verdes e pela esquerda radical (Grupo GUE). Uma tal “coligação” está muito longe de qualquer maioria e, mais relevante do que isso, é virtualmente impossível do ponto de vista programático. Com efeito, os partidos que constituem a família política da GUE – em que se integram o Bloco e o PCP – são, no essencial, partidos “anti-UE”, seguramente “anti-euro”. Tanto o grupo socialista como o grupo dos verdes, deve reconhecer-se, são compostos por partidos claramente pró-europeus. Como é bem sabido, a grande clivagem no PE reside na convicção pró-europeia ou no credo anti-integração e, por isso, a exportação da “geringonça” é absolutamente inviável. Diga-se de passagem que não é por acaso que os acordos da “geringonça” em Portugal nunca se estenderam às chamadas “matérias europeias”.

3. Do que se tem falado é de outra coisa – que nada tem que ver com uma “europeização da ‘geringonça'” –, mas que é, tudo visto e revisto, largamente imaginária. Cura-se de uma pretensa aliança entre o grupo socialista e o grupo liberal, baptizada por alguns como uma “aliança progressista”.

Por um lado, esta designação faz tábua rasa da natureza ideológica dos liberais europeus. Importa frisar que a família política liberal é muito heterogénea, com muito mais diversidade e divisão interna do que o grupo PPE ou até o grupo socialista. E que, com a esperada chegada dos “macronistas”, que representarão um quinto do grupo e que curiosamente recusam o epíteto “liberal”, a inconsistência interna só pode aumentar. Acresce – ponto muito relevante – que qualificar os liberais como “progressistas” (do ponto de vista dos socialistas) é deveras estranho. Os liberais no PE, em matéria económica e de intervenção pública, situam-se à direita do PPE e, em muitos casos, nos antípodas do grupo socialista. Na área social, o PPE – com as suas raízes na democracia-cristã e a sua doutrina da economia social de mercado – está bem mais próximo dos socialistas do que estão os liberais. Já em sede de costumes e de causas fracturantes, estão normalmente à esquerda dos socialistas e, aí sim, podem denominar-se como progressistas.

Por outro lado, e é aqui que bate o ponto, tirando umas fotos de Macron – que não é liberal – com um ou outro primeiro-ministro socialista, não há nenhuma evidência de um diálogo privilegiado entre socialistas e liberais. De resto, essa sacra aliança não disporia de qualquer maioria parlamentar, nem que se juntasse aos verdes e até conseguisse chegar aos anti-europeus da GUE. Aquilo a que se tem assistido, isso sim, é a um diálogo – para já bilateral – entre as quatro famílias políticas assumidamente pró-europeias: PPE, socialistas, verdes e liberais. Houve sem dúvida, em termos europeus, um desenvolvimento constitucional relevante: um arremedo de organização do Conselho Europeu – que reúne os chefes de Estado e de Governo – por famílias políticas. A reunião informal de sexta-feira última em que estiveram dois primeiros-ministros de cada uma das três famílias partidárias com expressão significativa no Conselho é um avanço importante. O Conselho, até aqui, centrou-se sempre na lógica estadual e no interesse nacional, agrupando-se por vizinhança geográfica ou de dimensão. Desta feita, está a adicionar a essas lógicas de actuação uma contaminação político-partidária. É um progresso institucional que, apesar da generalizada sensação inversa e adversa, atesta mais um passo integrador da UE: o Conselho a funcionar como uma “altíssima” câmara alta em que os representantes dos Estados interiorizam e institucionalizam uma afinidade partidária.

4. As negociações vão naturalmente desembocar numa distribuição mais harmoniosa dos altos cargos europeus, hoje com uma clara hegemonia do PPE – que, na verdade, já não tinha justificação em 2014 e especialmente depois de 2017 (quando somou a presidência do PE à da Comissão e do Conselho). Sempre considerei essa concentração – de resto, não correspondente a uma maioria desse calibre – negativa para a UE. É, por isso, positivo que agora, seja qual for o balanço final, haja uma repartição equitativa de responsabilidades. As negociações bilaterais e multilaterais vão ainda arrastar-se e, sem querer ser pessimista, vão demorar-se.

SIM e NÃO

SIM. Marcelino Sambé. A ascensão à categoria de bailarino principal do Royal Ballet não é só motivo de orgulho. Deve ser estímulo para cuidar de uma arte maltratada entre nós.

NÃO. Governo e TAP. Na polémica dos prémios a quadros da TAP caiu a máscara ao Governo. Afinal, a célebre reversão da privatização não foi mais do que um exercício de cosmética.

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