Os melhores lobistas de si mesmos

A pergunta certa é “como legislam os legisladores sobre si mesmo?”. E a resposta a essa pergunta é que o fazem de forma ainda mais fechada do que habitualmente.

Quem legisla os legisladores? A pergunta não merece dúvida: quem legisla os legisladores são os próprios legisladores. Numa democracia representativa é assim que tem de ser: todos os legisladores devem ser eleitos, e só quem é eleito deve legislar. Por isso nas recentes decisões em que deputados e partidos parlamentares legislaram (ou estão a caminho disso) sobre si mesmos, como nas decisões da Comissão da Transparência da Assembleia da República sobre atividades e incompatibilidades dos deputados, ou nas decisões da comissão parlamentar sobre financiamento dos partidos, ou mais atrás na alteração da legislação sobre cobertura de campanhas eleitorais, legislou quem tinha que legislar, mesmo que fosse sobre si mesmo. O problema não está aí. O problema é que legislaram (ou estão em via de legislar) mal.

Na verdade a pergunta “quem legisla os legisladores?” é a pergunta errada. A pergunta certa é “como legislam os legisladores sobre si mesmo?”. E a resposta a essa pergunta é que o fazem de forma ainda mais fechada do que habitualmente. Não há notícia de em qualquer outro processo legislativo — sobre pescas, desporto ou sinais de trânsito — não se ouvirem especialistas externos, observadores neutrais, representantes dos vários valores em causa. Mas quando os deputados legislam em causa própria em Portugal, é fatal. Fecham-se numa sala, as decisões são sempre alteradas à última hora com emendas convenientemente confusas, ou — como no caso da alteração da lei de cobertura de campanhas eleitorais, que beneficiou escandalosamente os partidos parlamentares — vota-se na última sessão possível, quando já está tudo a ir de férias, e antes do ato eleitoral cujas regras do jogo se vão alterar. E ai de quem o nota! Imediatamente é atacado como populista anti-partidos e anti-parlamentar.

Se fôssemos por aí, os deputados e as direções dos partidos parlamentares seriam os seus piores inimigos, porque são eles que sistematicamente esvaziam de sentido a democracia representativa e o parlamentarismo, subvertendo e até pervertendo o sentido do texto constitucional. A constituição estabelece os princípios da proporcionalidade e da igualdade? Os partidos convivem bem com sérias distorções do primeiro e, pior ainda, com círculos eleitorais em que os portugueses de Portalegre, digamos, têm muito menos direitos políticos do que os de Lisboa (porque se em Lisboa há pluripartidarismo, em Portalegre reina o bipartidarismo e praticamente não vale a pena ir votar que PS e PSD elegem sempre cada um o seu deputado). A Constituição manda que “o deputado exerce em liberdade o seu mandato”? Os partidos parlamentares carregam na disciplina de voto. Em qualquer sistema parlamentar do mundo o voto é individual e presencial? Em Portugal votam os deputados que não estão no hemiciclo e as cabeças são contadas por grupo parlamentar, como se fossem rebanhos.

Poderia continuar, que os exemplos são mais do que muitos. Mas na raiz de tudo isto está a cartelização exercida pelas direções partidárias entre si. Todas, de PCP a BE e PS, PSD e CDS se entendem bastante bem no fechamento do sistema, no asfixiamento das alternativas e no estabelecimento de barreiras à entrada. Porque se admiram agora todos que a política esteja transformada numa casta quando para compor as listas de deputados basta conquistar a direção partidária e encher as bancadas parlamentares de tropas a quem se exige disciplina, com o fugaz independente para compor a lapela? Se ele ou ela se comporta com alguma autonomia, basta não o convidar para a próxima vez. As listas são feitas por convite e as primárias abertas, que possibilitam a renovação dos candidatos, são “populismo”. Claro que em troca da disciplina e da obediência, as tropas exigem algo: que só mude o mínimo indispensável para que tudo fique na mesma. Os deputados desconhecidos das grandes bancadas são aqueles que, quando se chega a decidir das incompatibilidades, se rebelam: largar o escritório de advogados ou a sociedade financeira? Só se for para os que entrarem no próximo mandato. E os outros partidos não são melhores: neste mandato foi claríssimo que o BE se juntou ao lado negro da força, e não só na forma como se mancomunou com os partidos mais antigos na questão do financiamento partidário, mas também na maneira como se transformou num eficaz partido de bastidores interessado na ocupação de lugares ou na demissão de administrações públicas.

Quanto às barreiras à entrada, basta olharmos para as ruas do nosso país e ver uma coisa que não se vê em mais nenhum país do mundo: painéis publicitários caríssimos às centenas, pagos na maior parte dos casos com o dinheiro da subvenção pública. Aliados às alterações a benefício dos partidos parlamentares na cobertura televisiva das campanhas, esta foi a maneira que os partidos tradicionais portugueses encontraram de evitar a concorrência dos partidos emergentes. Só que foi pior a emenda com o soneto, e agora temos partidos emergentes dispostos a jogar o jogo das campanhas publicitárias dispendiosas, e até um não-partido travestido de partido com cartazes por todo o lado, numa campanha cujo financiamento é obscuro e que não obedece às regras normais de controlo dos partidos.

Por isso não se admirem que os deputados sejam os melhores lobistas de si mesmos e que a política esteja feita uma casta. Isto é assim porque a política partidária portuguesa é um cartel — e quando rebentar não vai ser bonito de se ver.

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