Transparência: copo cheio de medidas

Aceitar compromissos pontuais, sem abdicar dos princípios-chave da mudança, é, sem dúvida, o resultado mais importante para a democracia.

Criada pela Assembleia da República em 2016, por iniciativa do PS, a Comissão para a Transparência terminou os seus trabalhos de especialidade, apresentando uma reforma profunda e que acompanha a evolução europeia recente.

Naquela que é matéria inovadora, a da representação de interesses (habitualmente designada lobbying), garante-se a primeira regulamentação do tema em Portugal. É, assim, criada uma obrigatoriedade de registo prévio dos privados que queiram assegurar representação de interesses junto das entidades públicas e estas, por seu turno, devem registar e publicitar as audiências que lhes concedem. Determina-se que a atividade não é compatível com a profissão de advogado e os titulares de cargos ficam inibidos por três anos de realizar representação de interesses onde exerceram funções.

No novo regime de exercício de cargos públicos, consagra-se uma declaração única de património, rendimentos e interesses, tornando mais claro o cumprimento deste dever, a sua publicidade e fiscalização. Alarga-se o universo de pessoas obrigadas a fazer a declaração: os autarcas passam a fazer registo de interesses, os magistrados judiciais e do MP passam a entregar declarações junto dos seus Conselhos e os intervenientes em concessões e privatizações e os chefes de gabinete de membros do Governo ficam abrangidos. Por outro lado, assegura-se que as declarações são entregues na nova Entidade da Transparência, evitando a dispersão, e cria-se uma obrigação de entrega de declaração três anos após o fim das funções.

Com este novo regime, e respeitando a Constituição, resolve-se o problema da falta de sanções para rendimentos não declarados com intenção de os ocultar. PSD e CDS haviam tentado criminalizar o enriquecimento ilícito, duas vezes rejeitado pelo Tribunal Constitucional, mas esta insistência no erro foi ultrapassada, criando-se uma sanção penal para a não entrega ou ocultação intencional de património ou rendimentos, bem como a sua tributação a uma taxa de 80%.

Alarga-se ainda o âmbito do período de nojo após as funções, torna-se mais rigoroso o regime de impedimentos em matéria de contratação pública e detenção de sociedades e são criadas regras sobre ofertas e hospitalidade, com deveres de registo e inibições de participação em procedimentos que envolvam os ofertantes, nos casos de valor significativo.

No terceiro conjunto de alterações, relativo aos deputados, proíbe-se a sua integração em órgãos de concessionários, de parcerias público-privadas e do setor financeiro e dos seguros, e veda-se a aceitação de cargos de nomeação governamental. Ademais, naquela que é uma das alterações mais relevantes, e que decorre de propostas do PS, proíbem-se os deputados de representar e de litigar contra ou a favor do Estado e de entidades públicas e a detenção de mais de 10% ou de 50 mil euros de sociedade que o faça.

Apesar do alcance de todas estas medidas, tem sido uma alteração proposta pelo PSD o centro das atenções mediáticas. Entendeu o PSD que a extensão da nova proibição às sociedades de advogados seria inconstitucional ao afetar terceiros. Foi esta a única salvaguarda introduzida, que tem sido noticiada como o seu inverso. O que é realmente novo é que os deputados passam a ficar diretamente proibidos e correm risco de perda de mandato, o que não sucede até agora.

Numa democracia representativa, raramente é possível aprovar tudo o que se pretende, sem alterações. Perante o anúncio do PCP de que votará contra o conjunto das medidas, face à recusa de PCP e CDS de criar a Entidade da Transparência, e perante a oposição do BE e PCP e reservas do PSD em regulamentar o lobbying, a aprovação final dos diplomas correria riscos de não encontrar maioria se o PS não tivesse construído compromissos nalgumas áreas.

A intransigência teria tido como consequência nada alterar, deixando tudo na mesma. Findos três anos de trabalhos, a não aprovação da reforma teria um efeito devastador, travando os vários avanços. Assim, aceitar compromissos pontuais, sem abdicar dos princípios-chave da mudança, permitindo reforçar a transparência e melhorando a qualidade das instituições da República, é, sem dúvida, o resultado mais importante para a democracia.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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