Todos ao pedal

Enxerguem-se: há aprendizagens que devem ser feitas na família ou na sociedade e não na escola.

1. Escassas semanas após a criação da nossa agência espacial, li na imprensa que haverá um “quadro de referência nacional para ensinar a pedalar”. Li igualmente que aprender a pedalar será matéria do currículo escolar e fiquei ciente de que “no 1.º ciclo, as aulas serão em contexto protegido”, enquanto “nos 2.º, 3.º ciclos e secundário haverá uma passagem para o espaço público”. A coisa foi anunciada aos indígenas por José Mendes, secretário de Estado adjunto e da Mobilidade.

No atrasado Alentejo onde fui parido, pedalar era uma aprendizagem natural, assim houvesse um selim onde assentar o rabo. E porque sempre foi assim, de norte a sul, e assim deve continuar a ser, importa contraditar os avançados mentais da parolice curricular.

É paradoxal, direi mesmo burlesco, ver que são os que opõem as “aprendizagens essenciais” aos “programas obesos do século XIX” que querem, afinal, tratar os jovens como se fossem gansos reservados à produção de foie gras (iguaria que supõe a hipertrofia dos fígados das aves por recurso a alimentação forçada e bárbara, de funil, goelas abaixo). Exagero? Recordo-vos uma fracção diminuta do que tem sido despejado no enorme vazadouro em que se transformou o currículo do ensino obrigatório: prevenção rodoviária, prevenção da corrupção, educação sexual, educação do consumidor, educação económica e financeira, educação para a cidadania, para a saúde, para o empreendedorismo, para a igualdade de género e mais as literacias, todas, as digitais e as outras.

É importante que os problemas que afectam a vida da sociedade estejam presentes na educação dos jovens. Mas tudo não pode ser ensinado na escola, não podendo qualquer coisa dar origem a disciplinas ou conteúdos curriculares. Durante o ensino obrigatório nunca se poderá ensinar tudo o que é importante para a vida e boa parte do conhecimento que levaremos para a cova será adquirido fora da escola. 

As crianças e os jovens têm limites e a escola funções básicas, que não dão espaço a todas as iniciativas supervenientes a cada volta que a vida dá. Podemos e devemos ajustar o curriculum à evolução do conhecimento e à evolução do sistema social. Mas não o podemos fazer a meio de ciclos de aplicação, nem o devemos fazer sem visão de conjunto nem serenidade, muito menos constantemente e ao sabor dos lirismos do quotidiano.

A organização curricular do nosso sistema de ensino não pode confundir um quadro de formação global (cujas vertentes fundadoras serão pacificamente aceites pelo senso pedagógico comum como determinantes para as restantes aprendizagens) com uma chuva de competências instrumentais, propostas por alucinados, que querem equiparar o que não é equiparável, em sede de currículo. Enxerguem-se: há aprendizagens que devem ser feitas na família ou na sociedade e não na escola, instituição reservada ao ensino de matérias que estão para lá da simples natureza lúdica ou imediatamente utilitária; nunca a escola pode ou deve substituir a família e a restante sociedade, senão numa concepção de Estado totalitário (em que suavemente temos vindo a cair, com o conceito de “Escola a Tempo Inteiro”, do PS).

2. Os alunos que terminem o ensino secundário via cursos profissionais vão poder aceder ao ensino superior sem sujeição a exames nacionais, necessários como provas de ingresso. Considerando que 80% dos que terminam o 12.º ano via científico-humanística continuam os estudos no ensino superior, mas apenas 15% dos originários dos cursos profissionais lá chegam, o intuito primeiro torna-se óbvio: salvar do estertor da morte instituições do ensino superior que não têm alunos. Só que há óbvias consequências e perguntas segundas:

Para que criaram, há bem pouco, formações curtas, de dois anos, apenas ministradas nos politécnicos, destinadas aos alunos da via profissional? Se os alunos do ensino profissional podem chegar à universidade sem exames, o que pensam que pensarão os outros alunos do secundário? Não foi o PS (depois seguido pelo PSD) que estabeleceu o desígnio nacional de ter 50% dos alunos do secundário em cursos profissionais, para responder às necessidades da economia? E agora volta a ser de doutores que precisamos?

Seja como for, reconheço cândida coerência ao secretário de Estado João Costa, que afirmou há dias querer “indisciplinar o currículo”. Êxito dele, má sorte do país!

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