Museus devem rever discursos e refazer colecções sobre o passado colonial

Associação Acesso Cultura pôs em debate, em Lisboa, o tema da "descolonização dos museus".

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Exposição de máscaras e marionetas do Mali no Museu Nacional de Etnologia Daniel Rocha

Museólogos e investigadores defenderam esta sexta-feira, num seminário em Lisboa, a revisão do discurso e o refazer de colecções nos museus portugueses, tendo em conta o passado colonial de Portugal, que deve ser debatido “todos os dias, sem ressentimentos”.

Um painel de convidados participou no seminário Descolonizar os museus: isto na prática...?, promovido pela Associação Acesso Cultura, com o objectivo de debater um tema que tem estado na ordem do dia em vários países do mundo, sobretudo os que, no passado, tiveram colónias e uma ligação à escravatura, como Portugal.

Luís Raposo, presidente do ICOM-Europa (Conselho Internacional de Museus), face a perguntas da audiência, falou na necessidade de “rever discursos museográficos, refazer colecções, e constituir colecções que falem no tema da escravatura, ampliando ainda abordagens com a intervenção de comunidades com sensibilidades diferentes, para uma maior democratização destes espaços”.

Sobre a restituição de peças aos países de origem, considerou que “não é apenas uma questão técnica, mas também se esse sentimento de pertença é legítimo ou não, porque muitos dos objectos não têm a mesma simbologia”.

Isabel Raposo Magalhães, museóloga e especialista em conservação e valorização do património, apontou dados referidos no recente relatório elaborado em França, a pedido do Presidente Emmanuel Macron, no qual se indica que 90 a 95 por cento do património da África subsaariana está fora da sua área geográfica. Salientou “o papel fundamental das organizações intergovernamentais no acompanhamento e na criação de condições para a restituição do património”, apontando que a UNESCO, desde o final dos 1970, começou a falar na necessidade de restituir o património a África, com países e organizações a fazer esforços nesse sentido, nomeadamente a França e a Alemanha.

A restituição “passa por legislação internacional e pelo estudo da proveniência das peças, algumas delas já classificadas, o que poderá implicar a revisão de legislação nacional”, disse ainda Isabel Raposo Magalhães​, defendendo a mobilização da sociedade civil no sentido da descolonização dos museus.

Paulo Costa, director do Museu Nacional de Etnologia, por seu turno, apontou a falta de meios: “Os funcionários dos museus, à sua maneira, são todos os dias activistas, porque, apesar da situação, dão o seu melhor”. “O nascimento do museu de Etnologia, nos anos 1960, deu-se já numa filosofia de multiculturalismo, o que era, na altura, uma posição de vanguarda que é hoje desconhecida de muita gente”, vincou, convidando os participantes a visitar a exposição permanente da entidade.

Já o sociólogo Manuel Dias dos Santos defendeu que “é necessário debater as questões em torno do passado colonial todos os dias, em Portugal, sem juízos de valor, mas com factos, e sem ressentimentos”.

“Construíram-se novos mitos sobre a necessidade de se falar nessa questão em Portugal. Os mitos de arranjar o diabo no outro são uma especialidade que se constrói todos os dias devido aos esqueletos que o país tem nos armários”, disse o especialista, acrescentando que “é uma utopia dizer que a sociedade será de igualdade, mas poderá ser mais inclusiva, mais igual e mais justa, e daí essa necessidade de debate em torno destas questões, todos os dias, em Portugal”.

“A minha avó dizia que o mais difícil é olhar para dentro de nós e exorcizar o pior que há em nós. É difícil, mas é muito saudável”, comentou Manuel Dias dos Santos, um dos sete participantes num painel do seminário.

Na mesma linha, a museóloga Judite Primo apontou que actualmente, a nível internacional, existe um debate que reflecte uma perspectiva de reparação dos povos colonizados, e Portugal não pode estar fora desse debate como se não tivesse tido nada a ver com isso”.

“Não basta trazer uma mostra da escravatura para os museus, ela deve ser discutida e não colocar só o foco na dor, mas problematizar como gostariam de ser retratados os povos colonizados”, acrescentou Judite Primo, recordando as exposições que foram feitas em 2017, no âmbito da Lisboa Capital Ibero-americana de Cultura, que levou à mostra de mais de 200 peças e documentos relacionados com a escravatura.

Vincou a importância desse evento para “recordar os povos nativos que foram invadidos, massacrados e espoliados, e proporcionar um debate que permitiu que todos pudessem falar, nos museus, na presença da escravatura e dos afrodescendentes em Portugal”.

Luís Raposo referiu, a propósito, as três coleiras de sujeição colocadas a escravos que foram exibidas nessa altura, no Museu Nacional de Arqueologia, mas apontou: “Incrivelmente, com todo o passado colonial, há muito poucos vestígios directos da escravatura em Portugal”.

Joacine Katar Moreira, activista e investigadora de estudos africanos, invocou a invisibilidade do tema nas escolas: “Os jovens, e mesmo pessoas de outras gerações, não sabem nada sobre a escravatura”. “Oficialmente, ninguém nos orienta relativamente a esta área. Houve um investimento na história da epopeia colonial, que é destacada como uma época áurea, de heróis, de uma nação valente, e a escravatura não é referida nas escolas, e muito menos a história da resistência e da insubmissão”, apontou.

Joacine Katar Moreira salientou ainda que “as pessoas não querem ser responsabilizadas pelo seu passado, mas o passado pode ser catalogado com os olhos da actualidade”.

Catarina Simão, artista que tem vindo a trabalhar sobre a memória há cerca de uma década, em Moçambique, “onde todas estas heranças coloniais estão muito vivas, nomeadamente os preconceitos projectados pelos portugueses”, indicou que na relação com a História, naquele país, “há uma falta de conhecimento da História colonial”.

A artista está actualmente a desenvolver um novo projecto a convite da Universidade Pedagógica de Nampula, que aborda historicamente e criticamente a custódia de objectos e de arquivos de representação de arte Makonde em vários museus europeus.

A Acesso Cultura - Associação Cultural, criada em 2013, dirigida por Maria Vlachou, instituiu prémios que tem vindo a entregar anualmente para distinguir entidades que apliquem boas práticas na área da acessibilidade cultural, tanto a nível físico, como social e intelectual.

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