Arte colonial: Alemanha prepara devolução e Rijksmuseum critica passividade holandesa

Os 16 estados da federação alemã comprometem-se a repatriar peças adquiridas de “formas hoje legamente e moralmente inaceitáveis”. Entretanto, perante a “vergonha” que é a inacção do Estado holandês, um dos mais destacados museus do país tomou a dianteira.

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O Rijksmuseum detém cerca de quatro mil peças oriundas de antigas colónias Miguel Manso

“Uma vergonha”. É sem pudor na linguagem que o director do Rijksmuseum de Amesterdão se refere à incapacidade demonstrada pela Holanda para restituir às suas antigas colónias peças que dali provieram e que integram até aos nossos dias as colecções de arte do país. Na Alemanha, por sua vez, as autoridades tomam acções concretas. Esta quarta-feira, os responsáveis pela Cultura de 16 dos seus estados federados anunciaram a reunião de esforços para repatriar artefactos de colecções públicas recolhidos “de formas hoje legalmente e moralmente injustificáveis”. A devolução é “uma obrigação ética e moral”, escrevem num comunicado conjunto.

Prometendo iniciar um diálogo com representantes dos países de onde os artefactos em questão são originários, os responsáveis culturais alemães, conta o The Art Newspaper, anunciaram a inventariação de todos os objectos nas suas colecções etnográficas, dando prioridade à devolução de restos mortais humanos. A ministra da Cultura da Alemanha, Monika Grütters, reconheceu que o passado colonial alemão tem sido ignorado internamente nas últimas décadas e descreve o acordo agora anunciado como “uma manifestação de responsabilidade histórica”.

O processo de devolução, que começa agora a mobilizar vários países europeus que tiveram domínios coloniais, foi desencadeado pelo discurso do Presidente francês, Emmanuel Macron, no Burkina Faso, em 2017, no qual prometeu devolver à sua origem as peças africanas na posse dos museus franceses – em Novembro do ano seguinte, um relatório por si encomendado recomendava que a restituição deve ser feita rapidamente e sem reservas. A discussão pública na Alemanha intensificou-se também com a aproximação da inauguração oficial do Humboldt Forum, em Berlim, marcada para o final deste ano; o novo equipamento acolherá uma colecção etnográfica onde se incluem cerca de 50 mil peças trazidas de África durante o período colonial.

Na Holanda, as declarações do director do Rijksmuseum, Taco Dibbets, ao diário De Trouw chegam no momento em que a instituição dá início a conversações com o Sri Lanka e a Indonésia para começar a definir o destino de cerca de mil peças que poderão ter sido roubadas ou adquiridas de forma moralmente dúbia, tendo em conta o contexto colonial.

Na semana passada, o Museu Nacional das Culturas Mundiais, que agrupa o Tropenmuseum, em Amesterdão, o Afrika Museum, em Berg en Dal, e o Museum Volkenkunde, em Lovaina, publicou um conjunto de directivas a seguir pelos países que desejem reclamar a devolução de arte pilhada ou que detenha grande valor cultural, metodologia que já foi alvo de críticas. “Antes que surja qualquer negociação, a Holanda define antecipadamente as suas condições. É uma abordagem tipicamente holandesa. Como é que isso conduzirá a uma decisão conjunta satisfatória?”, questionou no De Trouw Jos Van Beurden, especialista em arte colonial.

Para o director do Rikjsmuseum, que detém cerca de quatro mil artefactos de arte trazida de antigas colónias, “é uma vergonha que a Holanda só agora esteja a virar as suas atenções para a devolução do património colonial”: “Devíamos tê-lo feito mais cedo e não há desculpas [para não o termos feito]”. Contrariando a metodologia proposta pelo Museu Nacional das Culturas Mundiais, que definiu as regras para aceitar pedidos de devolução, ou seja, mantendo uma postura passiva, o Rikjsmuseum enviará daqui a duas semanas ao Sri Lanka Martine Gosselink, directora do departamento de história da instituição, para discutir com responsáveis cingaleses o destino a dar algumas das obras da sua colecção. Na Primavera, será a vez de a instituição viajar até à Indonésia.

Neste momento, as atenções centram-se em dez objectos, incluindo um canhão com rubi incrustado pilhado numa campanha militar em 1765 e o diamante de Banjarmasin (localidade indonésia) que pertenceu ao sultão Panembahan Adam, soberano naquela área do Bornéu colonizada em 1856 pelos holandeses. “Não é possível resolver o assunto a partir da Holanda. Temos de nos sentar com as pessoas lá e analisar caso a caso”, afirmou Taco Dibbets. “Há questões diferentes a ter em conta em cada país. Cada país é um caso”. Porém, a decisão final quanto à devolução não pertencerá ao museu. Dado que todos os artefactos dos museus nacionais são propriedade do Estado holandês, caberá ao Governo a última palavra.

A decisão do Rijksmuseum e as fortes declarações do seu director surgem num momento em que está definitivamente aberto o debate sobre o destino a dar aos artefactos detidos por antigas potências coloniais, uma discussão que se estende muito para além da definição técnica da propriedade dos mesmos ou das condições em que fizeram o seu caminho das colónias até aos museus das então metrópoles. Está em causa a forma como os países europeus lidam com o seu passado colonial, questão que também em Portugal tem sido alvo de aceso debate, e as reparações devidas aos países que exploraram.

Na Bélgica, entretanto, o recentemente reconfigurado Museu Real para a África Central discute neste momento com o Governo congolês a devolução das peças da sua colecção retiradas do Congo durante a ocupação colonial. O British Museum, por sua vez, iniciou em Outubro, lemos no The Guardian, uma série de iniciativas através das quais pretende esclarecer a natureza das peças que detém, e a justiça ou não da sua aquisição – até agora, recusou devolver à Grécia os Mármores do Parténon e ao Egipto a Pedra de Roseta. Em Portugal, o tema da restituição, que nunca chegara à esfera pública, começou, por fim, a ser discutido. E, em Dezembro, a ministra da Cultura de Angola, Carolina Cerqueira, em declarações ao Expressomanifestava a intenção de iniciar “consultas multilaterais com vista a regularizar a questão da propriedade e da posse, por um lado, e, por outro lado, da exploração dos bens culturais angolanos no estrangeiro”.

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