Legítimo e intolerável na restituição “à origem” de colecções dos museus

Devolver ou não devolver, eis a questão. Nuns casos sim, noutros não, nomeadamente quando a devolução seja feita para consumar a destruição final de bens que a ciência moderna tenha transfigurado em objectos de estudo.

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Há décadas que a Grécia reclama a restituição dos frisos do Pártenon que estão em exposição no Museu Britânico, em Londres DYLAN MARTINEZ/REUTERS

Um recente relatório feito a pedido do Presidente francês, versando sobre “A restituição do Património Cultural Africano, em direcção a uma nova ética relacional” (ver por exemplo no sítio do ICOM França: www.icom-musees.fr), tem relançado nas últimas semanas o tema, já antigo, da devolução “à origem” de peças e colecções desde há muito incorporadas em museus, um pouco por todo o mundo, mas especialmente na Europa e nos EUA. O âmbito temático, cronológico, jurídico e conceptual é agora muito mais vasto. Não se fala somente de colecções pilhadas em tempos recentes, quando existiam ordenamentos jurídicos internacionais que o deveriam impedir; e não se fala apenas de objectos arqueológicos ou etnográficos, por isso com especiais laços de relação empática com comunidades que, bem ou mal, se digam descendentes ou representantes de culturas indígenas antigas, mesmo que desaparecidas há séculos. Fala-se de tudo. E fala-se sobretudo de países, mais do que de povos.

O Chile, por exemplo, reclamou no início de Novembro do Museu Britânico os restos fósseis de um mamífero da Patagónia extinto há dez mil anos, recolhidos no século XIX. Não tardará muito que as tartarugas-das-galápagos, recolhidas por Darwin, sejam também reclamadas. E depois os seus cadernos de apontamentos, que se dirá, e bem, constituírem elementos contextuais indispensáveis à plena valorização das mesmas.

A consigna é a de clamar contra relações de opressão e espoliação colonial, independentemente de quando tenham ocorrido, e exigir repará-las, fazendo a história recuar até onde for preciso. Tomemos o exemplo dos 25 obeliscos do Egipto faraónico conhecidos até hoje: somente quatro estão no Egipto; os restantes andam por aí, principalmente na Europa, mas também fora dela. Que regressem, pois. Começando talvez pelo que a colonizada e oprimida Cleópatra “ofereceu” ao colonizador e opressor Júlio César e, depois de peripécias várias, acabou desde o século XVI por assentar arraiais na Praça do Povo, em Roma. Ah, mas alto lá: retornando ao Egipto, que vão para os exactos locais de origem, já que dos quatro que lá ficaram apenas um está onde realmente foi erguido e os restantes encontram-se a adornar praças.

Postas as coisas neste pé, tudo está claro e todos os espíritos não cavernícolas deveriam estar de acordo. Mas então por que insistem em complicar? Por que insistem em pôr pedras no caminho? Nuns casos, chamam a atenção para a ambiguidade “das origens”. Porque não poderão países desenhados pelas metrópoles coloniais e, eles mesmos, profundamente coloniais na relação interna entre elites de descendência europeia e povos indígenas reclamar esse estatuto?

Noutros casos, duvidam das reclamações de pertença. Por que não poderão activistas actuais dos Umatilla reclamar-se descendentes de um esqueleto de há oito ou nove mil anos, desenterrado pelos arqueólogos em Kennewick? Noutros casos ainda atrevem-se os mais mesquinhos a dizer que não existem condições de conservação e exposição “na origem”. Por que se inquietam com algo que lhes não respeita? Se existe ou não museu de acolhimento, e quais as suas condições, é de somenos. De resto, uma boa parte do que se reclama nem sequer é para guardar em museu, mas para cumprir o que ficou interrompido devido à irrupção violenta colonial: restos humanos e mobiliário funerário, se for para enterrar de novo, que seja; se for para cremar, que seja. Seria, aliás, esse o destino do esqueleto de Kennewick, acima citado, representante das iniciais presenças humanas na América do Norte, não fora ter-se interposto o tribunal, em conluio com os cientistas. Conluio puro e simples, claro: esta coisa da ciência e das Luzes é invenção ocidental, destinada a reforçar a opressão colonial.

É tudo tão simples no mundo do preto e branco. No mundo das igrejas, sejam elas religiosas ou ideológicas. Para quem, todavia, se levanta aqui cedo sabendo que já é tarde acolá (ou vice-versa, não se vá acusar a metáfora de colonial); para quem entre noite e dia sabe que existem a aurora e o crepúsculo, com todos os seus cambiantes; para quem, sendo na ciência positivo, se habitou a duvidar, bom, para estes tudo é mais complexo. E dirão talvez que os museus das metrópoles coloniais deverão, antes de tudo, garantir a total legalidade das suas colecções. Deverão depois rever os tratamentos que lhes dão, mas sem rendição a irmandades (muçulmanas ou outras) que exigem, por exemplo, a retirada da vista de todas as múmias, quaisquer que sejam os tempos e os lugares. E deverão, sim, considerar o seu retorno “às origens” em casos limite, bem delimitados. Antes de todos, os da dignidade da pessoa humana.

Práticas outrora toleradas de utilização de deficiências ou de meras variações (tanto dentro das populações de pertença como noutras, ditas exóticas), para gáudio em feiras e também para observação em museus, convertidos em zoos, são intoleráveis hoje. Fez bem por isso o Museu do Homem em devolver à África do Sul os restos de Sarah Baartman, a tristemente chamada “Vénus Hotentote”

Vêm depois todos os casos de reclamação de ligação afectiva de países e, sobretudo, povos a peças e colecções deslocadas para museus, tanto internamente como para o estrangeiro. Mas aqui os critérios de avaliação devem ser muito severos e não existe razão para tratar diferentemente as relações coloniais das da guerra, da dominação imperial em geral ou até do mero comércio de antiguidades, feito à luz da legalidade de cada época.

O exemplo mais clássico é o dos Frisos do Pártenon: ainda que legalmente obtidos, deverão ser devolvidos à Grécia, porque constituem emblema nacional e existem condições adequadas, ideais mesmo, para a sua exposição próximo do local de origem. O mesmo se diria da Custódia de Belém, se não tivesse sido recomprada à viúva do general francês que a saqueou. Mas já a Xorca de Sintra, hoje no Museu Britânico, por muito que os arqueólogos a considerem icónica, nada diz aos portugueses em geral e seria por isso ocioso reclamá-la (ainda por cima sabendo que só para lá foi, no princípio do século passado, porque as autoridades não garantiram na altura a Leite de Vasconcelos os meios para a adquirir).

Devolver ou não devolver, eis a questão. Nuns casos sim, noutros não. E quase sempre não certamente quando a devolução seja feita para consumar a destruição final de bens que a ciência moderna tenha transfigurado em objectos de estudo, porque neste caso se trata de combate civilizacional entre o mundo da racionalidade, ou das Luzes como foi chamado, e um mundo da irracionalidade, pretensamente novo, mas que pode bem ser chamado das Trevas, como outro no passado.

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