Os funcionários públicos devem poder fazer greve?

Se o sector público tem privilégios únicos, também deveria ter obrigações exclusivas. Algo tem de mudar.

Não tenho nenhuma resposta definitiva para a questão que dá título deste artigo, mas estou absolutamente convicto de que ela deveria estar a ser debatida na sociedade portuguesa. Sim, eu sei que o direito à greve está garantido pela Constituição, e que jamais os partidos teriam coragem para avançar com uma alteração destas tendo em conta o poder do funcionalismo público em Portugal. Mas aquilo que me interessa, neste momento, é o debate de ideias, e não a possibilidade ou impossibilidade de pôr em prática semelhante proposta. As pessoas dão como adquiridas muitas coisas porque sempre as viram ser feitas de certa maneira, mas às vezes é bom parar um pouco e pensar: será que faz sentido?

O direito à greve não é irrestrito, mesmo em Portugal. Os militares não podem fazer greve. Os polícias também não. Esse é um direito que as associações sindicais da polícia têm reivindicado insistentemente (“todo o trabalhador deve ter direito à greve”), mas que o próprio Tribunal Europeu dos Direitos do Homem declarou não ter de ser atendido, devido à especificidade da profissão e em nome da ordem pública. Claro que em Portugal, como sempre, a lógica é uma batata: um polícia de trânsito não pode fazer greve, mas um guarda prisional já pode, tal como um inspector da Polícia Judiciária. Não faz sentido. O direito à greve inscrito na Constituição tem limitações – a questão está em saber até onde elas devem ir.

Embora haja pouca consciência disso, os funcionários públicos estão altamente limitados no direito à greve em países como o Luxemburgo ou a Polónia. Nos Estados Unidos, estão mesmo proibidos de fazer greve na maior parte dos estados, incluindo Nova Iorque. Entende-se que essa possibilidade prejudicaria demasiadas pessoas, sobretudo as mais pobres: quem está mais dependente dos serviços públicos é quem fica mais prejudicado com as greves dos seus funcionários. Os ricos têm os filhos em escolas privadas, vão a hospitais particulares e deslocam-se nas suas próprias viaturas. São os mais desfavorecidos que sofrem com as greves dos professores, dos enfermeiros ou dos comboios.

As greves no sector público não são um problema apenas entre o trabalhador e o seu empregador – como acontece, por exemplo, no caso da Autoeuropa, que é uma questão entre a Volkswagen e os seus funcionários, com a qual pouco ou nada temos a ver. Na função pública há uma terceira parte envolvida – os cidadãos e contribuintes –, e, portanto, o seu impacto é muitíssimo maior. Pior: essas greves são feitas num sector onde o trabalhador nunca corre o risco de perder o emprego.

Os trabalhadores da Autoeuropa podem ver a fábrica fechar ou ser deslocalizada. Os trabalhadores do Estado não podem ser despedidos e o seu patrão não vai laborar para a República Checa. Donde, a desproporção entre as reivindicações e as suas consequências é imensa. Muitos funcionários públicos nem os salários perdem, porque os sindicatos quotizam-se para repor o dinheiro. Consequência óbvia: são muito mais numerosas as greves no sector público do que no privado.

Mais: as greves em Portugal podem ser selectivas, rotativas e às pinguinhas (somente algumas horas durante o dia). Todo o cardápio está à disposição dos grevistas, para que possam obter o máximo de impacto com o mínimo de empenho. Isto é uma rebaldaria inadmissível num Estado que respeite os seus cidadãos. Se o sector público tem privilégios únicos, também deveria ter obrigações exclusivas. Algo tem de mudar.

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